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Mostrando postagens de outubro, 2013

Notas sobre o deserto.

Ele estava no deserto. Fazia semanas que não comia. Ele usava somente drogas para manter-se acordado. Trabalhava dez horas diárias, sem nenhum pagamento. Seus olhos estavam afundados, e sua pele estava queimada e ressacada. Uma promessa havia sido feita: se eu não puder ter a mulher da minha vida, vou trabalhar até minha morte. Ele havia se comprometido com a sua missão: ele morreria independentemente do que acontecesse. Não havia solução, ninguém convenceria aquele homem do contrário. Era isso que ele imaginava.              Depois de três meses com um regime rígido de trabalho, e pouca alimentação, ele estava na porta da morte. Ele acreditava piamente que havia cumprido sua missão. As pessoas morando naquele grande albergue não sabiam seus planos. Todos achavam que ele procuraria ajuda quando o momento chegasse, mas a febre somente aumentava. Ele fez uma posição, esquisita, de meditação e esperou pela morte. Mal ele sabia a extensão em que seus desejos seriam realizados. Ele com

Sexo.

             O problema das memórias é que não temos controle sobre quais vão permanecer. Não podemos escolher em reter, somente, a memória que nos faz sorrir e pensar que o melhor ainda estar por vir. Ao contrário, eu diria que as piores memórias são aquelas mais difíceis de se desapegar. São os fracassos que nos lembramos com terrível permanência. Um amigo meu, com trinta anos, diz que nunca mais foi o mesmo desde a sua primeira lembrança romântica. Ele age, como um misógino, passando de mulher para mulher, sem anotar o nome no telefone, traindo qualquer relacionamento possível, sem nunca se apegar além do necessário, do extremamente mínimo.              Ele chegou na casa da namorada, algumas horas antes do horário combinado. Ele andou, lentamente, pela sala da casa. As roupas estavam jogadas no chão. Calças jeans, cuecas, casacos, meias e sapatos. Tudo parecia deslocado naquela casa organizada. Ele pensou, primeiro, que os pais delas poderiam estar fazendo sexo naquele momen

Meus heróis morreram antes dos trinta.

O professor se levanta da cadeira. O auditório está cheio de alunos. O professor tem uma longa barba branca que toma conta de todo seu rosto. Ele está fazendo uma palestra sobre o símbolo de artistas perturbados como mitologia. O professor parece raivoso, descontrolado, argumentando pela mudança de tal mitologia mundana. O homem não precisa ser desesperado para criar literatura, arte e poesia. Os homens felizes são os verdadeiros artistas que moldam sua vida como uma obra de arte. Um aluno começa a rir. É um riso frenético e demoníaco. Sua voz se levanta. O professor fala para ele levantar a mão. O professor, alto e desengonçado, não sabe como responder aquele aluno: queria desconsiderar seu argumento, antes mesmo que ele falasse. Debochando, disse para o aluno tomar a palavra. O estudante levantou e desceu, lentamente, até o centro inferior do auditório. Os alunos assistiam, pasmos, aos seus passos: ele era baixo, um pouco gordo e tinha um bigode. Parecia saído de um conto russo

Para o mundo todo ver.

Desde jovem, ele tinha sido irrepreensível. Não dava ouvidos a ninguém. Vindo de uma família humilde, tudo que ele pedia era a música. Depois de uma virada de sorte, seus pais haviam ganho uma pequena quantia na loteria. Cada filho recebeu sua cota do dinheiro. Ele correu até a loja mais barata de instrumentos, e foi empilhando a guitarra, o baixo e a bateria. Seus irmãos o seguiram, já que seus pais haviam lhe ensinado o lema: “Nunca abandone seus irmãos”. As primeiras sessões foram terríveis, ninguém sabia muito bem o que estava fazendo. O som era raivoso, sem direção, e um misto de arrependimento e tristeza. Mesmo assim, eles eram irmãos. O mais velho sempre decidia o que fariam: o nome da banda, qual o estilo de música e quem ficaria com qual instrumento. Os dois escutavam em silêncio. No dia da morte do seu pai, todos eles ficaram sem palavras. Os três irmãos pareciam não se diferenciar um do outro: o sentimento era inefável, inexpressível e ridículo. Era como se o pesar que

Eu sempre quis ser Hemingway.

Reza a lenda que eles invadiram o restaurante. Um dia antes do final da segunda guerra mundial, homens suspeitos, munidos com uma metralhadora, entraram no mais distinto hotel da França. O escritor disse, com cuidado, que ele tinha lutado todos aqueles anos para retornar ao seu bar de juventude. Ele correu até a adega, sorriu sem jeito, e optou por sentar-se em silêncio, em desespero sobre tudo aquilo que a guerra havia lhe custado; sua saúde, seu casamento e sua sanidade. Sentado naquele lugar, ele começou a gritar pela liberdade de Paris. Aquele momento seria narrado por seus biógrafos, como o lugar em que ele decidiu que seu último livro seria um ode à sua juventude em Paris. Ele começou a gritar ordens, dizendo, lentamente, que aquele era nosso bar, quis trocar o nome do estabelecimento para “O Marujo Selvagem”, mas nenhum dos seus amigos soldados concordou. Era colérico ao dizer quem queria se tornar, eu sou o homem que salvou Paris, sem saber que em um lugar, não muito dista

Realidade virtual

A internet é um desafio para a sociedade. Ela muda a forma como nos enxergamos, e como vivemos com outros. As neuroses são alimentadas, e as pessoas passam dias inteiros, completamente, obcecados por uma tela de computador. Nunca sabemos até que ponto temos controle sobre nossos vícios. Ele, sozinho, observava a mesma página pela décima vez do dia. Para cada página da sua tese escrita, ele tinha alguns momentos de paz com os olhos sobre o brilho doloroso do computador.              Anotou em uma grande lousa sobre a sua cama: PASSAR MENOS TEMPO NO COMPUTADOR, VIVER A REALIDADE. Desde jovem, tinha achado que qualquer visão de realidade era conservadora. Seguindo os movimentos de arte vanguardista, que ele nunca conheceu a fundo, gritava a plenos pulmões para a libertação. Não conseguia, no entanto, se apegar aquilo que ele não conseguia tocar. Ficou desesperado, enciumado, com um amor que existisse, plenamente, no toque de um domingo de manhã. Por isso, ele perdeu sua noção de real

Os senhores da morte e vida.

             As palavras tem som. Uma sonoridade infalível de como a vida deveria funcionar. Toda ficção é um apelo ao descobrimento de si, dos outros, e da volta do relógio. O grande ponteiro vitoriano nunca desacelera suas setas em direção ao outro extremo, em que nosso dia acaba. Ele adentou a casa como se fosse dono dela, querendo dizer tudo que aconteceria. Deitaram, delicadamente, seus pensamentos sobre o papel. Exigiu retidão e respeito, numa terra sem deus. Queria que ela pudesse entender seus delírios. Ela tentou ajeitar tudo com a arte da psicologia. Disse que eram delírios, sinais de uma patologia que haveria de cessar. Ele silenciou-se como se soubesse do fim da história, como se o final da folha do seu papel, pudesse ser um exercício nefasto de destruição.              Ele, soluçando, recuperou suas palavras. Começou a descrever como fora raptado por todos os significados sobre os quais ele fugirá sua vida toda. Seus melhores autores, companheiros e amigos, não sabi

Tantália.

Um texto deveria começar com uma breve introdução. Uma nota de rodapé que permitisse com que todos entendessem quem era o autor. Um sorriso deslocado e perspicaz sobre quem coloca seus sonhos em palavras. As palavras resolveram viver em sociedade, convocaram uma festa, uniram seu corações e acreditaram em uma continuação. Todo autor continuaria suas próximas obras como se fosse uma continuação eterna, repetitiva, da mesma temática. A tosse que se assemelhasse ao espírito humano renascido em uma narrativa. Os homens, finalmente, teriam paz. Foi isso o escritor, envelhecido pelo tempo, quis dizer, quando ele repetiu que nossos amores são como plantas. Macedônio Fernandez não permite que a planta, viva ou morta, permaneça como uma incógnita. Ele tem que arrancar suas raízes do fundo do vaso, percebendo que, talvez, não haja mais ponto final. Seu desespero foi querer modificar a dúvida, como os cientistas que nunca saberão se o gato na caixa está morto ou vivo. O grande argentino arre