Sexo.
O problema das memórias é que não
temos controle sobre quais vão permanecer. Não podemos escolher em reter,
somente, a memória que nos faz sorrir e pensar que o melhor ainda estar por
vir. Ao contrário, eu diria que as piores memórias são aquelas mais difíceis de
se desapegar. São os fracassos que nos lembramos com terrível permanência. Um
amigo meu, com trinta anos, diz que nunca mais foi o mesmo desde a sua primeira
lembrança romântica. Ele age, como um misógino, passando de mulher para mulher,
sem anotar o nome no telefone, traindo qualquer relacionamento possível, sem
nunca se apegar além do necessário, do extremamente mínimo.
Ele chegou na casa da namorada,
algumas horas antes do horário combinado. Ele andou, lentamente, pela sala da
casa. As roupas estavam jogadas no chão. Calças jeans, cuecas, casacos, meias e
sapatos. Tudo parecia deslocado naquela casa organizada. Ele pensou, primeiro,
que os pais delas poderiam estar fazendo sexo naquele momento. Tal pensamento
lhe comprou alguns segundos de tranquilidade, mas ele, ainda, lembrava daquele sutiã,
daquela camiseta e daquele cheiro de sexo no ar. Tinha que ser sua namorada. O
barulho estava aumentando, enquanto ele andava na direção do quarto dos pais da
menina. Era alto, pulsante, contagiante. Gemidos, bateres de perna,
agressividade. Ele respirou fundo, antes de entrar no quarto. Passou pelo
corredor como se, realmente, não quisesse chegar ao seu destino. Pensou que
poderia dar as costas, e não ter que pensar sobre o assunto. Aquilo não havia
acontecido. Ele sabia que no momento que ele pisasse naquele quarto, algo
mudaria. Quando nosso coração é quebrado pela primeira vez, é uma sensação única,
praticamente, inexpressável. É uma dor tão intensa que parece que não vai
acabar. Ele poderia ter agido, de forma machista, e ter cometido um ato de
violência. Ele certamente era capaz para tanto. Ironicamente, eles viram ele e,
ainda assim, continuaram. Ele andou até a porta de casa. Meu amigo nunca me
descreveu o que havia acontecido depois, mas tenho certeza que ele chorou. Ele nunca
admitiria, mas imagino ele, na frente daquela enorme mansão, chorando muito,
sem parar. Ninguém assistindo. Um momento da mais sincera solidão.
Talvez as feministas estejam certas,
se nós pararmos de pensar em relacionamentos como relações de propriedade,
nenhum desses problemas vai existir. Se nós entendêssemos que todos nós temos direito
de fazer sexo com quem quisermos, quando quisermos e sob as condições que temos
vontade. Acredito, hoje em dia, piamente nesse direito. Nessa liberdade, de
mesmo em um relacionamento, de fazer sexo com alguém, mas acredito que, com meu
amigo, foi especial. Eles não pararam, isso foi determinante. O impacto visual
que isso faz em um adolescente é enorme, aquela memória ficou presa na sua
cabeça. Não sei até que ponto realmente temos a capacidade de fugir dos lugares
que assolam nosso passado. Dar um passo longe desses locais é impossível. É
neles que definamos quem somos, ou, o que queremos nos tornar.
Lembro de como o médico tentou me
explicar que eu teria de parar de fazer sexo por um bom tempo. Ele descreveu
meus problemas com a circulação de sangue, depois passou a explicar minhas
diversas alergias, finalmente, descreveu o remédio que teria de tomar. Ele era difícil
de se acostumar, extremamente pesado, e dificultaria sua libido. Disse que
tinha uma namorada, e não sabia como explicar para ela. Ele disse que não seria
fácil, mas que a maioria das coisas que importam, realmente, não são fáceis. Tentei
explicar para ela, mas ela não conseguiu compreender. Insistiu para tentarmos
várias vezes. Disse que eu não era capaz. Fez com que eu me sentisse menos do
que um homem. Terminei o namoro com ela. Ela olhou para mim e disse não
entender. Expliquei que a doença era complicada demais para ter alguém me
forçando a pular etapas do tratamento, ou, me exigindo sexo, quando eu ainda
estava me acostumando com um remédio potente demais. Ela disse que não
entendia, que eu era um idiota. Compreensão é algo complicado. Impossível,
alguns diriam.
Meu mesmo amigo, misógino, resolveu
me dar uma lição. Uma bela lição, eu diria. Ele quis me mostrar um vídeo, e
quando eu disse não entender, ele falou para que eu me acalmasse. Eu estava
estressado. Sentei no grande sofá, tentei diminuir minha respiração. Desde
jovem, aprendi que devemos contar nossa respiração quando estamos nervosos.
Minha ex-namorada estava no vídeo com dois homens fazendo sexo, inclusive meu
amigo. Quis levantar e acabar com a sua vida. Cada partícula de mim, quis
acabar com a sua vida. Levantei e comecei, devagar, a fazê-lo sangrar. Ele
estava no chão, quando começou a gritar: “Entenda que você está sozinho, não
desconfie, não pense, não reformule, imagine, saiba que você está sozinho”. Eu
não chorei, quis que ele soubesse que eu não era uma repetição do seu próprio
pesadelo. Aquela cena que ele criou, querendo recriar seu trauma, não seria meu
tormento. Ele me contou algo que eu já sabia, pressentia, respirava. Ele me
contou uma história sobre infelicidade, posse e padrões de estereótipos. Ele
estava pregando para o padre, essa era a completa verdade. Não precisava de
tudo aquilo, eu estava exausto.
Estou teclando no computador,
enquanto você dorme. Sei que não é justo inserir alguém no conto, enquanto a
pessoa dorme pacificamente na minha cama. Acho, no entanto, necessário explicar
algumas mudanças. Há muito tempo não consigo ver ninguém como a minha posse, ou
minha proibição. Não sou eu que dito as regras de vidas alheias. Desisti dessa
ideia romântica que para termos amor, nós temos que criar regras, mesmo assim
te vendo dormir, não consigo sentir nada a não ser ternura. Dá vontade de
contar tudo que me aconteceu. Minha doença, meu amigo misógino, e minha
ex-namorada, me dá vontade de contar várias coisas, mas eu não consigo. Não sou
mais a mesma pessoa que contou aquelas histórias. Agora tenho cinquenta anos, e
eu estou exausto. Não ligo mais para vídeos, traições ou qualquer violência
entre pessoas. Quero o silêncio de um apartamento vazio. De um jantar calmo. Os
discos encostados contra a parede. Seu sorriso, esporádico, pela casa. Era isso
que queria explicar. Esse era meu tipo de feminismo. Eu saio, sempre, do pressuposto
que eu sou machista, que eu sou opressor, mas, longe do consenso, não acho que
sou, somente, eu. Todos que compactuam com uma lógica que fode com nossas
cabeças, e cria traumas, ajuda no sistema. As mais cruéis imposições são
aquelas postas por nós mesmos.
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