Notas sobre o deserto.
Ele
estava no deserto. Fazia semanas que não comia. Ele usava somente drogas para
manter-se acordado. Trabalhava dez horas diárias, sem nenhum pagamento. Seus
olhos estavam afundados, e sua pele estava queimada e ressacada. Uma promessa
havia sido feita: se eu não puder ter a mulher da minha vida, vou trabalhar até
minha morte. Ele havia se comprometido com a sua missão: ele morreria
independentemente do que acontecesse. Não havia solução, ninguém convenceria
aquele homem do contrário. Era isso que ele imaginava.
Depois de três meses com um regime
rígido de trabalho, e pouca alimentação, ele estava na porta da morte. Ele
acreditava piamente que havia cumprido sua missão. As pessoas morando naquele
grande albergue não sabiam seus planos. Todos achavam que ele procuraria ajuda quando
o momento chegasse, mas a febre somente aumentava. Ele fez uma posição,
esquisita, de meditação e esperou pela morte. Mal ele sabia a extensão em que
seus desejos seriam realizados. Ele começou a andar em direção ao deserto, sem
saber onde pararia. Um menino criado com muito dinheiro e comida em abundancia,
não sobreviveria sozinho no deserto por mais de uma semana.
Ele encontrou uma pequena casa no
meio do deserto. Acreditou que fosse uma ilusão da sua febre, um preludio da sua
morte por assim dizer. Uma grande mulher o recebeu em uma cozinha cheia de
comida. Ela sorria, incessantemente, para o pequeno garoto. A velha mulher
tinha transformado o homem em um menino de apenas onze anos. Suas roupas
estavam largas, e ele não sabia explicar sua transformação. A velha vestia um
longo vestido verde, e parecia com seu amor perdido. Ela começou a articular
uma frase, mas ele rapidamente a interrompeu:
-Aqui
é o purgatório?
-De
onde você tirou essa ideia?
-Você
parece meu amor perdido, tem muita comida, e eu estava prestes a morrer. Parece
plausível.
-Não,
aqui não é o purgatório.
-Você
é humana?
-Acho
que sim, não sei direito o que você quer dizer com isso.
-Humano?
-É.
-Bem,
eu venho aqui dizer que estou pronto. Mande-me para a próxima fase.
-Bem,
sobre isso.
-O
que?
-Não
acabou.
-Lógico
que acabou. Não aguento mais usar a picareta no chão do deserto. Estou exausto.
E ela não me ama de volta.
-Bem.
-O
que?
-Ela
não te ama de volta mesmo.
-Você
faz um jogo um pouco doente, sua velha.
-Eu
tenho setenta belos anos, viu.
-Eu
sei, mas a quanto tempo você tem setenta anos?
Ela
olhou com confusão para o garoto, e disse:
-Bem,
nós temos que resolver seu problema.
-Qual
problema?
-A
menina e tudo mais.
-Mulher
da minha vida, por favor, é assim que eu chamo minha esposa.
-Vocês
nunca vão casar, no entanto você está certo.
-O
que?
-Você
está certo. Ela é a mulher da sua vida. Por isso, você tem que salvá-la.
-Isso
tudo parece fácil demais.
-Não
é.
-Tudo
bem, o que eu tenho que fazer para salva-la?
-Bem,
você deve viver.
-Como
assim?
-Olha,
não sei como te explicar isso direito. Os seres humanos acertaram em algo, cada
um de vocês é um pedaço separado de outra pessoa. No momento em que você
morrer, ela somente poderá viver um ano no máximo. Sabe, vocês eram tão
arrogantes, que cortaram vocês em minúsculos pedaços até que sua força não
resistisse aos deuses.
-Isso
é uma antiga lenda grega.
-Grega,
persa, egípcia, mediterrânea, inglesa, alemã, a língua que você escolher.
-Eu
não posso morrer.
-Sim.
-Isso
é ridículo.
-Você
foi avisado.
-O
que eu faço?
-Viva
sua vida.
-Algo
que soe menos como um livro de auto-ajuda.
-Tudo
bem. Persista, apesar dos pesares.
-Menos
novela das oito.
-Olha
garoto, diabos me mordam, eu não sei o que te dizer. Você quer que eu argumente
que a vida é linda, e tudo vai dar certo, mas essa não é a verdade. As coisas
vão ser confusas, e você vai se sentir exausto. Não terá paciência ou calma
para resolver seus problemas. As pessoas vão brigar com você. A arrogância ira
consumir o mundo inteiro em destruição. O melhor de tudo isso é que tudo vai
continuar, apesar das suas reclamações. Amanhã alguém vai acordar, beber café,
e arrumar a torrada. Vestirá o terno, abrirá a porta da casa, e irá trabalhar.
O sol vai levantar do mesmo jeito, independentemente do que você pense sobre
ele. Sabe, vocês reclama demais. Já pensaram o trabalho que deve ser administrar
tudo isso aqui. Caso exista uma força maior, aposto que ele há muito tempo
largou mão de controlar seus destinos. Não havia graça em tentar manipular
vocês, o bem e o mal são fases do destinos que nós traçamos. Então viva, não
viva, coloca uma escopeta na boca. Sabe, diabos, você é relativamente bonito.
Não é tão burro assim. Sabe colocar uma palavra do lado da outra.
-Você
é boa gente, velha.
-Eu
sei.
-Então
eu vou embora.
-Você
vai.
Ele acorda e está no meio do
deserto. Sai correndo até o hospital mais próximo. Os médicos não acreditam
como ele ainda poderia estar vivo. Ele está desidratado e desnutrido. Tem febre
que poderia matá-lo em questão de segundos. Ele resiste a noite toda, suando
frio, gritando que não devem ressuscitá-lo.
Com o passar do tempo, ele descobria
que aquela velha não estava errada. No fundo, nós somos seres separados em
milhões de pequenos pedaços. Tão pequenos, que cada um carrega o outro como
pequena lembrança, sempre prestes a sumir do seu corpo. Se ele morresse aquele
dia, ela morreria naquele minúsculo pedaço que representava sua vida. Ele
continuou vivendo, tentando adquirir o maior número de peças possíveis, como se
houvesse um grande quebra-cabeça prestes a ser completado. No entanto, sempre
faltava a peça final, aquela que daria sentido ao todo, mas há muito tempo, ele
havia desistido da completude do quebra-cabeça.
Havia
se felicitado em descobrir que cada pedaço repartido de si mesmo seria,
eternamente, uma lembrança no limite a ser esquecido. Lembrava-se de tudo isso,
enquanto ela pegava seu casaco, colocava sobre os seus ombros, e começava a
discursar sobre um problema qualquer. Parecia que aquele pedaço, mesmo longe,
sempre estaria a distância dos seus olhos, como se não houvesse tanta fuga, nem
ele gostaria que houvesse. Chegou à conclusão que não queria ser mais completo,
e andou, em direção, ao incerto.
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