Realidade virtual

A internet é um desafio para a sociedade. Ela muda a forma como nos enxergamos, e como vivemos com outros. As neuroses são alimentadas, e as pessoas passam dias inteiros, completamente, obcecados por uma tela de computador. Nunca sabemos até que ponto temos controle sobre nossos vícios. Ele, sozinho, observava a mesma página pela décima vez do dia. Para cada página da sua tese escrita, ele tinha alguns momentos de paz com os olhos sobre o brilho doloroso do computador.
            
Anotou em uma grande lousa sobre a sua cama: PASSAR MENOS TEMPO NO COMPUTADOR, VIVER A REALIDADE. Desde jovem, tinha achado que qualquer visão de realidade era conservadora. Seguindo os movimentos de arte vanguardista, que ele nunca conheceu a fundo, gritava a plenos pulmões para a libertação. Não conseguia, no entanto, se apegar aquilo que ele não conseguia tocar. Ficou desesperado, enciumado, com um amor que existisse, plenamente, no toque de um domingo de manhã. Por isso, ele perdeu sua noção de realidade, quando leu a seguinte mensagem: estou no seguinte restaurante, sozinha, tentando entender a noite desta bela cidade.
            
Ele já havia lido todo tipo de sacada espirituosa vindo daquele perfil. Esperava algo sagaz que pudesse ser lido como micro literatura. Um conto tão pequeno que cabia em minúsculas linhas do aplicativo. O perfil somente tinha uma foto: os olhos eram imensos, a roupa era um vestido longo, e seu corpo estava engraçado. Uma menina que parecesse tão bonita poderia ter tirado a foto perfeita. Ela, contudo, havia tirado uma foto em que seu rosto parecesse estranho: lembra-se de todos os filmes vanguardistas, em que os diretores faziam questão de terem atores fora do padrão de beleza. A menina, obcecada, quis fugir da sua própria beleza pelo viés artístico. Isto, no entanto, parece uma fuga retrograda a um desconforto natural. Foi isso que ele pensou, quando viu seu próprio rosto no espelho, e não entendeu a obsessão alheia. Seus traços eram tão esdrúxulos, que ele não via razão em escondê-los.
            
Existiam exatamente dez restaurantes com a descrição que ela havia feito no seu perfil. Ele passou duas horas e meia até encontrá-la.  Para seu desespero, aquilo pareceu muito natural. Era como se a internet fosse a extensão do seu próprio corpo. Ele segurou dois copos de cerveja, andou, lentamente, até a bela mulher. Ela sorria sem jeito, enquanto um velho tentava contar sobre o último esquema de corrupção na cidade. Ele sabia que tinha uma chance. O buraco entre conversas constrangedoras faz uma ótima oportunidade para conversar com mulheres segurando grandes livros. Ele rapidamente perguntou como havia sido seu dia. Ela sorriu, e começou a falar, sem parar. Por segundos, minutos e horas. Ele não disse uma palavra. Alongou seu braço até seus dedos magros, e a tocou. Por um segundo, ele acreditou que havia entendido a realidade.


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