Meus heróis morreram antes dos trinta.
O
professor se levanta da cadeira. O auditório está cheio de alunos. O professor
tem uma longa barba branca que toma conta de todo seu rosto. Ele está fazendo
uma palestra sobre o símbolo de artistas perturbados como mitologia. O
professor parece raivoso, descontrolado, argumentando pela mudança de tal
mitologia mundana. O homem não precisa ser desesperado para criar literatura,
arte e poesia. Os homens felizes são os verdadeiros artistas que moldam sua
vida como uma obra de arte. Um aluno começa a rir. É um riso frenético e
demoníaco. Sua voz se levanta. O professor fala para ele levantar a mão. O
professor, alto e desengonçado, não sabe como responder aquele aluno: queria
desconsiderar seu argumento, antes mesmo que ele falasse.
Debochando,
disse para o aluno tomar a palavra. O estudante levantou e desceu, lentamente,
até o centro inferior do auditório. Os alunos assistiam, pasmos, aos seus
passos: ele era baixo, um pouco gordo e tinha um bigode. Parecia saído de um
conto russo do século passado. Suas roupas estavam desgastadas, e ele parecia
não ter tomado banho há dias. Mesmo assim, ele sorria.
Bem,
professor, agradeço pela oportunidade de tomar a palavra. Poderia começar com exemplo de grandes homens
que não se suicidaram na juventude, mas cujas obras estão impregnadas com o
cheiro da morte. Se você sabe bem, Hemingway não morreu jovem, mas ele, ainda
assim, se matou no final da vida com uma escopeta. Foucault costumava fingir
seu suicídio para chamar a atenção dos seus colegas na faculdade. Ambas obras
lidam com a morte como podem, posso até dizer que escrever é lutar contra nossa
finitude.
Bem, tirando isso do caminho, posso começar a
descrever a vida daqueles que não passam dos trinta anos. Já que o senhor tão
amargamente os considera como infantis. Digo que, ao contrário, seus dilemas
estão presentes na vida daqueles que os admiram; seus sonhos e delírios renascem
nas suas reencarnações.
Nascido
no interior da Inglaterra. O menino brincava o dia inteiro pelas ruas de um
gueto, relativamente, pobre. Ele sempre quis ser o centro das atenções. Correu
por toda rua anunciando que iria pular do telhado. Os adultos não levaram em
consideração aquela brincadeira absurda. Crianças, no entanto, se aglomeraram
ao seu redor para assistir ao espetáculo. Dinheiro foi acumulado num chapéu como
um sinal de fé na sua coragem. Fechou os olhos. Sua respiração aumentou. Ficou
em descontrole. Correu ignorando a direção. Depois de pouco segundos, estava
destruído no chão do seu jardim. Todos correram em sua direção, adultos
gritando por ajuda médica. Alguns pontos depois e horas no hospital, ele
levantava. Bem, isso foi divertido, poderíamos tentar mais uma vez.
No
dia 18 de maio de 1980, a situação era oposta. Não era vida, mas morte. Ele
tirou as roupas do varal. Colocou-se sobre a cadeira. Fechou os olhos. Sua
respiração aumentou. Ficou em descontrole. Pulou. Muitos acreditaram que foi
por causa do término com a mulher. Outros creditavam o começo da maior turnê da
banda até aquele momento. Dados biográficos anteriores mostram que ele nunca
teve intenção de viver muito depois dos vinte anos. Havia repetido isso uma
centena de vezes, mas ninguém escutou, ou melhor, ninguém concebeu que isso
fosse realmente possível.
Bem,
devo contar poucos casos pessoais para explicar minha argumentação. Quando eu
tinha quinze anos, fiz uma aposta comigo mesmo. Sem saber o que eram claros
sinais de depressão, consegui comprar uma arma ilegal, por causa dos meus
contatos no mundo de drogas. Comprei uma garrafa de uísque. Coloquei os dois
numa caixa e escondi, onde ninguém pudesse achar. Todo ano, via de regra, no
meu aniversário caminho até esse lugar, desenterro a caixa, e penso comigo
mesmo qual o significado da vida. A arma é um revolver antigo com somente uma
bala. Não existe necessidade para uma segunda. Acredito que o que o professor não
entende é que não é uma questão de amadurecimento. Não é uma fase que vai
passar, é uma vida inteira seguindo a mesma fase.
O
vocalista da banda Inglesa estava com o terapeuta:
-Bem,
os ataques epiléticos não param. Não aguento mais a pressão. Parece que vou
morrer toda vez que saio do palco. Eu mudo. Deixo de gritar, dançar e me
expressar. Minha energia acabou, ninguém sabe o quanto me custa estar ali. É
exaustivo. Eu preciso de mais remédio. Quando eu trabalhava com entregas para
idosos, sempre roubava suas prescrições.
-Bem.
Não acredito que pessoas inteligentes ou artísticas devem morrer cedo. Sempre
gostei de acreditar que eles poderiam crescer, e se tornar seres humanas
maravilhosos.
-Estatisticamente,
qual a chance que isso realmente aconteça?
-Não
tenho os números exatos.
-Pode
chutar.
-Muito
pouco, acredito.
-Eu
sei. Sabe o ponto que você parece não entender é que não é uma linha reta. Não
é um estado de sanidade que lentamente vai tomar contas destas pessoas
inteligentes. Não é um amadurecimento a um lugar de capacidade de amar o
próximo. O maior problema é imaginar que esse lugar pode existir. Você tem que
desistir dele. Abdicar da sua possibilidade. Somente assim você pode se manter
respirando. Você tem que esconder uma arma com uma garrafa de uísque em algum
lugar e esperar que isto te acalme.
-Porque
desistir desse lugar?
-Porque
ele não existe. O mundo não é uma contraposição entre o lugar saudável e feliz,
com pessoas ao seu redor, e um deserto desolado. Para as pessoas como eu,
artistas perturbados, nós vivemos num lugar vazio.
-Isso
é um absurdo, vocês idealizam a morte, porque nunca a viveram.
-Talvez
os românticos, doutor, mas eu não. Qualquer pessoa sabe que a morte é nojenta.
É uma negação. Um terror noturno. Um desespero sem fim.
Estou
um pouco cansado, professor, acho que você pode voltar a sua palestra. Peço
desculpas pela interrupção. Eu te entregarei um pequeno ensaio, explicando
porque estou abandonando esta matéria. Não aguento mais sua forma de falar.
Parece que você espera que as pessoas aceitem essa sua felicidade. Senhor, por
favor, quem não está dentro desse abismo interno, não me venha narrar as
felicidades dos anos que estão para vir. Eu sei que sim, eu sei que não, posso
esperar as bodas, que eu nunca sei realmente se virão.
Gostaria
de, finalmente, destacar, uma entrevista com a suposta amante do Ian Curtis:
“No
palco, ele deixa a si mesmo exorcizar todos seus demônios, ele é um vulcão em
erupção. Depois do concerto, ele está exausto, mentalmente e fisicamente. Ele
se torna excessivamente doce e tímido, deslocado, cheio de questões sobre o
grupo e sua vida. Ele tem um imenso potencial, mas a honestidade de não liberá-lo.
Ele não tem cinismo, nenhuma pretensão”
Doutor, É nesse lugar, onde vivo.
Prova final de abandono da matéria:
Fiquem tranquilos, respirem fundo
e descubram a falha dos seus planos. É só uma fase, foi isso que era dito para
sua sanidade. Uma falha da juventude. Ele sorria: vocês são todos meus amigos.
Bob Dylan renascido em um ódio e amor, ao espirito que morreu nele. Eu não
posso mais compor, tirem essa porra de guitarra da minha mão. Ian Curtis
gritando, a plenos pulmões, que vocês não estão entendendo. Mesmo assim, o
crítico, o otimista e o homo feliz tinham um problema grave:
era um problema de sanidade, vamos chamar o psiquiatra, vamos pedir uma bela
análise.
O terrível pressuposto que tudo
era uma fase, que haveria de passar. Assim, gerações inteiras repetiram o erro
de esperarem a vida inteira por uma felicidade que nunca existiu. Trabalhem,
casem e tenham filhos. Façam tudo de novo. Morram se perguntando se tudo valeu
a pena.
Malditos críticos achando que tudo
é uma terrível fase de falta de sanidade. O sistema inteiro é uma incoerência
destrutiva. Nós temos o direito de estarmos nervosos. Inferno, nós estamos
muito frustrados. Todos os autores que eu gostei fugiram do holofote.
Finalmente, o sucesso, o mundo inteiro começa a sorrir. Menos eles.
Radiohead fazendo chamadas para o
rádio e repetindo: eu tenho que dizer essa besteira de novo. Radiohead na Rádio
101, nós repetiremos a mesma mensagem para vocês que nos outros lugares. O
homem, na rua, gritando: escreva uma canção depressiva sobre meu grito
“dickhead”, ao invés de Radiohead. Por favor, transforme minha violência em
arte. Com certeza, seu doutor. Na minha arte, no entanto, você é o anti-cristo,
e eu sou um pobre ateu.
Nunca consigo esquecer a primeira
lembrança que tenho na minha mente. Um homem, deslocado, no bar, escrevendo
como se o seu universo estivesse em chamas. Vamos, me contem suas histórias.
Qualquer coisa, eu preciso saber se o velho que voltou do mar trouxe um peixe.
Ele trouxe um terrível animal, que lhe custou sua vida. Hemingway queria dizer
algo mais pesado, grave, a natureza vai tirar seus últimos suspiros.
Não se importe, até o final, o
velho resistiu, corajosamente, contra aquele maldito peixe. Era uma questão de
honra, não tem nada a ver com a fama. Tirem essa ideia de sociedade mal pensada
teoricamente, na cabeça dos meus heróis. Se existia sociedade ali, ela era a
morte dos seus sonhos. Com isso, eu digo, não venham acusar meus heróis de
falta de amadurecimento, pois são vocês que colocam tal ideia, simplória, nas
bocas deles.
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