Os senhores da morte e vida.

            
As palavras tem som. Uma sonoridade infalível de como a vida deveria funcionar. Toda ficção é um apelo ao descobrimento de si, dos outros, e da volta do relógio. O grande ponteiro vitoriano nunca desacelera suas setas em direção ao outro extremo, em que nosso dia acaba. Ele adentou a casa como se fosse dono dela, querendo dizer tudo que aconteceria. Deitaram, delicadamente, seus pensamentos sobre o papel. Exigiu retidão e respeito, numa terra sem deus. Queria que ela pudesse entender seus delírios. Ela tentou ajeitar tudo com a arte da psicologia. Disse que eram delírios, sinais de uma patologia que haveria de cessar. Ele silenciou-se como se soubesse do fim da história, como se o final da folha do seu papel, pudesse ser um exercício nefasto de destruição.
            
Ele, soluçando, recuperou suas palavras. Começou a descrever como fora raptado por todos os significados sobre os quais ele fugirá sua vida toda. Seus melhores autores, companheiros e amigos, não sabiam o que lhe dizer. Ele viu a sombra de um fantasma na parede, dizendo que no dia seguinte, ela haveria de morrer. Seus olhos e faces lembravam Saramago levantando-se sobre a cama da sua mulher, com a estimativa e o conhecimento que o mundo um dia iria acabar. Saramago me disse às palavras que eu esperava nunca ter que ouvir. Ele previu os contornos de uma retórica sobre nos dois. Disse do assalto que iria tirar sua vida e do subsequente destruição da minha sanidade. O velho português me disse que a história era um mecanismo que poderia ter acontecido de outra forma, se ao menos eu conseguisse escutar.
            
Ela, desavisada, não desejou escutar meu apelo. Saiu de casa, como se nada fosse acontecer. Sobreviveu seu último dia, sem saber da sua morte. Atravessou a rua e acenou aos mesmos mendigos, ela tinha um sorriso inabalável sobre o que significava seu nome. Foi, correndo, que ele gritou no meio da rua, enquanto eles atiravam ao alto. Os ladrões erraram os tiros, mas a polícia não teve o mesmo destino.

Em questões de segundos, Matilda morria. Sentindo-se desolado, ele voltou para a casa com o uísque na mão. Esperando o encontro final com Saramago. Respirando o ódio, daquele que não poderia mudar o destino. Contou, lentamente, os números dos segundos até a porta abrir. O homem que surgiu da porta vestia trajes fúnebres e trazia na sua mão um pergaminho. Leu, pausadamente, a lei daqueles que controlam a vida e a morte: Neste dia de verão, você lembrou-se da sua reencarnação, por isso quis dizer as palavras, com a sonoridade, mas o amor somente existe se conseguimos esquecer o que nos passou; Se soubermos o que nos aconteceu no passado, cada momento exato, a população estará exterminada em poucos séculos. Isto deve servir de lição, os escritores há muito tempo abusam das musas.


Neste momento, Saramago se levantou, colocou uma faca no peito daquele maldito Chinês. Finalmente, consegui dormir. Ela, do meu lado, me abraçava como se nada tivesse acontecido. Mal ela sabia que eu fui até as portas do inferno para recuperar sua sombra sobre a minha parede. Ela não sabia do esforço necessário para enganar os senhores da vida e morte. Ela respirava, no entanto, encarecidamente com o ritmo do relógio. Pude vislumbrar um momento de sanidade, antes de despertar deste sonho.

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