Devolvida ao remetente
Devo
começar esta nota por um lembrete, ou melhor, uma tentativa de recapitular
certas coisas que foram ditas. Toda pessoa no momento em que emite uma palavra,
arrepende-se, automaticamente, do seu erro, pois é impossível roubá-la de
volta. A escrita, infelizmente, faz isso duas vezes, e perpetua, por meio do
tempo, este pobre erro. Não é sem acerto que Platão quis expulsar todos os
malditos poetas da sua cidade perfeita, afinal, eles acabariam dando muito
trabalho ao rei filósofo que já não queria explicar muito bem suas razões. Ás
vezes, a literatura é uma forma de explicar suas razões. Não sempre.
Deveria começar com um pedido de
desculpas. Sempre odiei voltar atrás. Qualquer passado para aquele que deseja o
progresso deve ser eliminado, trucidado e esquadrinhado numa pequena cela, onde
o sol não bate, e a comida é rara. Lembro-me do seu rosto, quando disse que
estávamos terminados. Em minha defesa, mal entendia o conceito de tempo e o que
ele era capaz de fazer com a nossa mente. Essa é uma nota de desculpas, que
nunca vai ser entregue. Imagine as milhões de cartas presas no correio, sem
remetente, perdidas em algum lugar num infinito de desorganização. Imagine
minha carta, como um ponto minúsculo numa rede, inesgotável, de leveza.
Pessoas jovens pensam todo o tipo de
absurdo. Confrontado com a morte, poucas pessoas saem com a sua cabeça inteira,
ou, para ser otimista, saem com qualquer possibilidade de normalidade. Desde
pequeno, pareceu-me estranho todo aquele ambiente, esterilizado, em que ninguém
poderia conversar. Não haviam companhias. Não haviam ligações ou cartões.
Ambiente branco e completamente vazio. Minha mente se organizou assim e, por
sinal, ainda se permanece deste jeito.
Talvez, eu possa dizer a frase que
mais me lembra do seu rosto. Você é uma pessoa tão estranha que chega a ser
engraçado. Gosto do som da sua voz falando essa frase e a forma,
despretensiosa, em que você parece entender onde estou chegando. Você estava
bem vestida, bebendo, ignorando a existência alheia. Eu apareci como um sopro
de vida, completamente, ignorante que seu corpo havia bebido das dores do
tempo. Permite-me a total ignorância, um pecado capital, combatido pelo
enforcamento no meu futuro tribunal constitucional da loucura.
Sejamos
aqui sinceros, você me enforcou nesse lugar há muito tempo atrás, e trancou uma
porta, que eu, sempre, espiei, esperando um pequeno feixe de luz em que eu
pudesse me encaixar. Se isto soa excessivamente absurdo, gosto do som dessas
palavras, do seu rosto dizendo absurdo, como se minha existência, do começo ao
fim, tenha sido um erro. Posso gostar de tudo isso.
Com
o passar do tempo, o rancor te domina ou te abandona. Graças a algum força cujo
nome desconheço, mas recuso Deus, por princípio, o rancor me abandonou. Veja
bem, eu ainda beijaria você na praia, e trocaria o tempo perdido no teclado da
minha velha máquina de escrever, juro, por tudo que é de mais forte nessa vida,
que eu voltaria no tempo, e reescreveria todas as baboseiras que cometi.
Provavelmente, depois disso, cometeria muitas outras, mas não daquele jeito,
não daquela forma, não sem preocupação. Ser jovem é acreditar que tudo pode
começar de novo, e isso perdeu-se no tempo. Já não imagino que voltarei a te
ver, nem que essas palavras possam te atingir, mas, ainda assim, livrado do
rancor, o que resta é um poeta expulso da república do Platão.
Peço
com grande pesar que perdoe os dias que não soube te alegrar. Que entenda os
dias que eu fugi, doente, em direção ao hospital. Entenda porque eu disse que
você não poderia ir na porta, recusei a sugestão médica de que você poderia
ajudar. Você não poderia imaginar pelo o que eu estava passando, se não aquele
castelo, assustador, de ilusões sobre nosso amor poderia morrer, e eu não
poderia permitir com que isso acontecesse, eu me negava, terminantemente.
Nosso
amor, na minha cabeça, deveria ser um emaranhado de boas memórias, onde não
haveria espaço para tristezas excessivas ou sons energéticos. Construiríamos um
belo mundo em que o tempo não haveria de passar, em que as marcas das nossas
rugas, pudessem se desenvolver sem apreço pelo mundo ao redor. Depois da sua
partida, eu fiz questão de montar o nosso apartamento dos sonhos, sozinho, como
se fosse a continuidade de um sonho pela metade, ainda, sempre, a ser completo,
mas numa esperança, ingrata, de que as linhas que percorrem nossos corpos
viriam a se encontrar.
Comecei
a contar uma história. Não sempre. Comecei contando uma pequena mentira, que
nunca havíamos terminado. Aos poucos, passei a desenvolver a história com mais
precisão, eu esperava minha namorada que se mudaria de outro lugar, com o
passar dos dias, levei a sério minha posição. Coloquei um apartamento à espera.
Tentei explicar a todos. No final, mentia sobre um término, mas que era uma
pausa e não um fim, porque já não existiam pontos finais, apenas virgulas, ou
dois pontos, qualquer expressão que me deixasse um segundo mais perto de você.
Carta
devolvida ao remetente, 1998.
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