Saudosismo

Uma criança sorri, enquanto brinca, desavisada, sobre os olhares que seu pai lhe da. Ele tenta enxergar nos seus olhos, o brilho que nunca deixou de existir. Os olhos são estruturas estranhas, mantém seu brilho, mesmo sobre as condições mais adversas. O clube da luta começa com um homem abrindo um caderno, os órgãos começam a falar naquelas páginas. Boa tarde, eu sou os olhos, sou aquilo que você deixa de ver. Bom dia, eu sou as córneas, você terá que ficar cego para poder entender. A criança sorri, casualmente, sem saber direito sobre as reflexões do seu pai que brinca com os dedos, enquanto se preocupa com sua filha, seu jeito, seu andar, e sua vida. Pergunta-se o que haveria de ter acontecido, caso ele fosse mais tolerante, caso suas palavras não tivessem sido tão amargas. Sua esposa poderia ter ficado em casa. A geração repete os mesmos erros do passado, seu pai havia sido abandonado pela sua mulher, depois de vinte anos ausente desta mesma vida.
            
O gato brincava sobre seus pés, e a filha parecia ter usado aquele animal como substituto para o amor incondicional que ela sempre gostaria de ter. O pai imaginava que quando ele era pequeno, ele imaginava uma ilha imaginária. Ali, ele viveria como rei, seus sorrisos seriam excessivos, a comida e a bebida nunca acabariam. Vendo seu pequeno apartamento, preenchido por sua filha e seu gato, ele entendeu que tudo havia dado certo. Os quadros pendurados deslocados na parede, sem nenhuma preocupação com a proporcionalidade. Os livros abarrotados em cantos da sala, seus olhos secos sobre todas suas anotações na parede. O pai não brigava com a filha por causa dos seus desenhos, eles, na verdade, o acalmavam num dia difícil. Ambos de mãos dadas com um sol mal desenhado, e nuvens que relembravam algum poliedro esquisito. Ele deveria falar sobre isso com ela depois, mas desistiu da ideia assim que a formulou na sua mente.
            
O saudosismo é um sentimento estranho; perdemos aquilo que não existiu de verdade. Nenhum momento pode ser congelado na nossa mente, como se a realidade nos pertencesse. O tempo é um senhor cruel e injusto. Suas mãos assolam nossa mente, e confundem nossos sentidos. Respirar fundo, era isso que ela pensava. Lembrou-se do seu pai lhe explicando que a surpresa de uma criança mais vale que um tédio de um adulto. Ela tentava relatar a seriedade com que ele tratava assuntos cotidianos, como se houvesse algo, inerentemente, especial em comprar pão. Colocava ela nas costas e dizia que a existência era uma grande aventura, fadada a altos e baixos, e um final incompleto nas páginas, confusas, de outro.
            
A máquina de escrever fazia um barulho alto, ela teclava com rancor, seu espirito estava contaminado de saudosismo, sua solução para os seus problemas. Certa vez, sorriu sem graça, e disse:

-Pai, eu não entendo porque nunca tive uma mãe.

-Você teve a mim, está de bom tamanho.

(Ele era alto, e levantou, como se fizesse uma piada sem graça)

-Você entendeu o que eu quis dizer, sinto-me incompleta.

-Porque incompleta?

-Por isso.

-Sabe, danado, parece que não se sabe direito o que te ensinei. Todos nos sentimos incompletos, quebrados e invisíveis. Um grande véu esconde nossos sentimentos. Nossos olhos nos enganam, eles nos dão um retrato que vive somente na nossa mente. Você não teve uma mãe. Eu não tive um amor. Ou melhor, eu tive sim. Você era meu único amor. E o gato, ele é bem importante.

(Ela soltou um riso alto)

-Não menospreze nosso gato, ele já sobreviveu a duas guerras mundiais, e dizem, as más línguas, que foi capaz de destruir um helicóptero sozinho.

(Ela continuou rindo)

-Entenda que o corpo nos confunde, a mente nos embaraça e todos, seres humanos, nos mentem. A vida é uma grande piada, você só não vai entender a frase final. Por isso você não pode parar de rir, de andar, de se movimentar. Mantenha seus pés ágeis, eles são tudo no que você pode confiar. Ande muito. Respire muito. Grite, se possível, mas não o suficiente para parecer descontrolada. Você é minha filha e eu te amo, isso faz algum sentido?

-Não.

-Então, tudo que posso fazer é pedir desculpas, e falar que tem sorvete na geladeira.

-Eu sabia que você tinha a solução mágica para todos os meus problemas.

-Sim, correto.

            
Eles se abraçaram, e sorriram. No fundo, ela sabia que havia sido mais sortuda do que poderia ter imaginado. A máquina de escrever estava diminuindo o volume, escutando as memórias dos seus olhos. Seu namorado se estendia na cama, abraçando o gato, ironicamente, apelidado de boa sorte. Seu pai havia escolhido o nome, suspeitando a necessidade do lembrete no cotidiano da sua filha. Seu namorado lhe chamou para cama, mas ela não podia, possivelmente, escutar. Sua parede azul lhe fitava como uma imensidão obscura, retirando-lhe a paz. Tocou na foto da parede com seu pai, desajeitado, vestindo um terno de vovô, abraçou o saudosismo, e deitou em paz, dizendo que não havia sexo essa noite, ela precisava de um pouco de silêncio, o namorado olhou incompreensivo, mas se calou, não adiantava falar com ela daquele jeito. Seu olhar estava em outro mundo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Congresso geral do Fracasso.

A morte das palavras.

Esquecimento.