Exausto
O
homem que senta no escritório parece cansado. Não parece a primeira vez que ele
boceja no dia, levanta, sem disposição, bebe água e volta a sentar-se. Ele já
imaginou, centena de vezes, o que poderia fazer de diferente com seu dia. O som
da água escorrendo pelo bebedouro, os cochichos de trabalho ao seu redor, todos
discutindo o que está prestes a acontecer nas suas vidas. Seu silêncio parece
tomar conta do cômodo aos poucos, como se a liberdade fosse, na verdade, um
tipo de entardecer.
Ele
queria ter uma vida emocionante. Imaginou-se caçando no meio das selvas
amazônicas; onde ele, finalmente, teria paz de espirito, mas não por muito
tempo, um tigre o perseguiria, numa luta mortal, em que nenhum dos dois saberia
o resultado até a última respiração, sabendo dos segredos sobre nosso passado,
nós já fomos simples macacos. Ele pensava tais pensamentos tolos, enquanto
tomava seu café, não havia dormido na noite anterior, seus olhos estavam
dilacerados por sonhos que nunca havia vivido.
Kafka
morreu sem ser famoso. Trabalhava o dia inteiro e, de noite, escrevia cartas
que ele achou que ninguém jamais iria ler. Toda noite, o homem inventava um
correspondente novo. Certa vez, fingiu que mandava uma carta a sua mulher,
descrevia como se conheceram, num site de relacionamentos, e como havia sido
ridículo o primeiro encontro numa casa de café. Continuava descrevendo na carta
como seus primeiros diálogos haviam sido desajeitados, e ele não sabia o que
dizer. O mundo dos relacionamentos é uma loucura, você tem exatos dez minutos
para dizer algo impressionante ou está perdido. Ele respirava fundo, e tentava
falar pouco. Os seus companheiros de trabalho chamavam seu nome, perguntavam
sobre o novo projeto de lei, ele respondia rapidamente, sem interesse. Nenhum
deles imaginava o que passava na sua mente. Se ao menos ali, ele pudesse ser
livre.
Se
ele construísse um prédio imenso, cheio de alicerces, rodeado de jardins, com
pessoas sorrindo em suas casas, a solidão não poderia se tornar algo real.
Imaginou-se no papel de um escritor de livros de auto-ajuda. Vocês têm os poder
dentro de si mesmos, não fujam da sua solidão, abracem tudo que sabem sobre si.
Respirem fundo. Achem seu animal interior. No fundo, somos todos uma espécie.
Sintam empatia por todos ao seu redor, você não tem como saber a realidade
daquele que está ao seu lado, pergunte, questione, afirme, saiba que tudo pode
mudar no ritmo de um relógio. Mudem de parceiros, entendam a todos, todos somos
só um, vão a igreja, recuperem sua família, tenham um sonho bonito. A
imaginação acaba aqui.
Ele
acorda de manhã, o despertador toca numa altura intolerável. Ele toma banho
rapidamente, sabendo que está atrasado para o trabalho. Tentar ler o jornal,
mas não consegue se concentrar em qual foi o último político, usuário de cocaína,
que havia protestado contra a morte da democracia. Seu sistema de governo já
havia morrido milhões de vezes, antes mesmo que sua morte tivesse sido declarada.
Estamos, constantemente, declarando a morte de alguém que não viveu, os
conceitos são meros reflexos dos nossos desejos, ele pensava nisso, enquanto
observava, no canto do olho, seu chefe. Autoridade. Que conceito estranho.
Escolhemos padrões arbitrários e, então, dizemos que alguém é superior a outro
alguém. Existe fé nessa conceituação, como se pudéssemos, realmente, dizer algo
sobre a qualidade interior que existe dentro de outra pessoa.
O
outro é um ser indecifrável. Cada palavra é uma frustração para a autoridade,
uma revolta contra um sistema que tenta determinar nossa escrita. Saramago
pulava as vírgulas, chamava-se socialista, era delicado com cada fã. Sorria o
dia inteiro, desde que sua mulher estivesse o acompanhando. Alguns estão certos
de dizer que o amor só vem com a idade, com a sabedoria. Ele sentado, desejava
saber quando seria o almoço, se poderia dizer algumas palavras contra o
cotidiano. Uma revolta crescia, dentro dele, poucas palavras se articulavam ao
redor da sua boca; calem-se vocês, eu estou prestes a ter uma revelação.
Sua
última carta foi endereçada a um escritor que ainda iria nascer. Disse para ele
saber que a vida era dura. Não havia nenhuma beleza por trás de todo caos, não
busque no cotidiano sua felicidade, os homens estão contaminados de pesadelos
sombrios. Disse, mais, que não parasse de escrever, nem que seus dedos ficassem
gélidos sob a ótica dos seus pares. A escrita era uma atividade solitária,
Hemingway disse, não julgue, mas compreenda. Ame muito. Se possível, morra de
amor, não existe nada mais bonito nessa terra. Sofra tanto que cada canto do
seu quarto pareça um sonho frustrado. Levante, manhã depois de outra manhã, se
perguntando se você deve sair da cama. No entanto, saia da cama, como se nada
tivesse acontecido, o nascer do dia pode representar o recomeço de um fim que
nunca chegou a acontecer. Grite contra o sol, e, se possível, contra todos
aqueles que determinem quem você é. Não escute. Não fale. Não tente. Mesmo
assim, ele continuava digitando o projeto de lei, ele já não lembrava mais o
número, enquanto tinha pensamentos que seriam capazes de decepar a cabeça do
mais profundo dos seres humanos.
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