Devandra

Ele está sorrindo, sem jeito, incomodado com uma reação previsível. Ela parece estar sem palavras, seu dicionário tinha sido esvaziado pelo pedido incomum. Quando ele disse a palavra, ela pareceu estremecer. Lembrou -se dos seus pais e quis chorar, dizer que as regras haviam sido invertidas, e que ele não sabia do que estava falando. As pessoas, de forma geral, não entendem que o fracasso existe, consome, mata e reduz. Cada pedido é um fracasso prestes a nascer. Era isso que ela queria dizer, mas ele ainda sorria.  

Sua casa reproduzia seu descaso. Seus móveis se reduziam a poucas almofadas esparramadas pelo chão, e vários instrumentos organizados em ordem de tamanho. Seu violão ficava no seu colo, tocando uma doce melodia, suas palavras pareciam pura poesia, sem cortes. Sua roupa era uma jaqueta de couro desgarrada, e uma calça longa demais para o seu corpo. Ela se vestia bem, e imaginava como aquele apartamento poderia ser alterado. Primeiro, imaginou uma limpeza, tinta nova, cores vibrantes. Imaginou-se naquela cama isolada na parede. Seus quadros pendurados por pequenos pregos, ele haveria de se machucar tentando impressioná-la, sem saber que ela não se importava se ele sabia ou não colocar um prego, ela era habilidosa em montar móveis. Imaginou-se naquele recinto, naquele pedido, impossível, e quis sair da sua resignação. 

Talvez foi tudo que ela disse. Um talvez sonoro, expressivo e que, automaticamente, iluminou o rosto do homem barbudo. Em cinco minutos, ele sabia. O pedido em casamento foi ridículo: ele se agachou aos seus pés, com certeza absoluta do que fazia, respirou fundo e, finalmente, gritou que eles iriam se casar. Talvez. Talvez. Talvez. A entrevista continuou como se nada tivesse acontecido, no entanto ambos sabiam que suas vidas tinham sido transformadas para sempre.  

Duas pessoas sentavam numa mesa de bar. Um homem contava a história. O tom de voz aumentava, conforme a história avançava, até o ápice do pedido de casamento em cinco minutos. Todos eles riram. Nenhum deles acreditava na possibilidade daquela história. Quando a vida nos maltrata além do aceitável, nos resignamos ao que está ao nosso alcance e não no que poderia acontecer. Utopias são criadas por homens desesperados que não conseguem ver a felicidade no seu horizonte. A utopia é uma estrada que nunca é sinalizada, e está cheia de buracos, mesmo assim, sorridente, ele começou a discursar. Seus olhos estavam brilhando de insensatez, gritos ecoavam no bar, seu copo se levantava, e todos se silenciaram:  

Bem, vocês entendem, que eu já fui casado cinco vezes, usei drogas até minha cabeça explodir, e tentei encontrar qualquer abrigo no silêncio da noite. Escutei o eco daqueles que passavam por mim e viam, somente, um mendigo.  

Sinto, como todos vocês, que esse homem é um idiota, que seus sonhos são feitos de papéis, e suas ilusões castelos elaborados de metafisicas frustradas. Um pedido de casamento em cinco minutos.  

Sei, como ninguém, que o maior inferno é aquele espaço, circular, entre pensamentos viciosos. No entanto. E sim, vocês sabiam, que haveria de ter um no entanto. Se sabemos que Hitler matou milhões de judeus, o homem é o lobo do homem, estamos aqui em guerra, o que poderia mais ser dito? Eu sei, vocês concordam, a política vai mal, os impostos altos e nossas mulheres querem colocar nossa cabeça a prêmio pelo arroz de amanhã.  

No entanto. Era isso que eu queria dizer, eu olhei para alguém hoje, posso ter decidido, sem nenhum critério aceitável, que ela vai ser minha namorada, não sei dizer porque meus olhos caíram sobre rosto, ou a luz da noite iluminou aquela passarela, por um instante, enquanto eu me recuperava da ressaca.  

Meu filho me disse, pai, o que aconteceu com você. Ele me disse que meus olhos tinham sido trocados, e minha voz tinha sido removida da minha garganta. Tentei explicar para o meu filho que não era o mesmo homem de horas atrás, mas já não adiantava. Mesmo se a mágica está morta, nós nos obrigamos a revivê-la todos os dias, quando olhamos para outros na rua, cheiramos o orvalho da manhã, e gritamos contra o acaso. Obrigamos a magia a existir, como se houvesse outra forma de perpetua-la. Sabemos, como crianças um dia souberam, que a fé é uma mentira, mas uma das mentiras em que devemos acreditar. Meu filho escutava, mas não entendia. Eu dizia, mas não escutava.  

Ela tinha dezoito anos, cabelos esparramados, e seus olhos não ficavam parados. Olhavam tudo ao redor sem nenhum espanto. Sua semblante reproduzia o fracasso da sua genética. Risos deslocados enfraqueciam sua resolução. Passos contados. O corredor se estreita, ela acelera o passo, como se pudesse haver qualquer diferença. Chora, mas se recusa a deixar as lágrimas escorrerem, preocupa-se com a sua maquiagem. Ajeita o vestido, e pensa que o tempo poderia ser invertido. Sua ansiedade mata sua respiração, e aleija seus pensamentos.  

O homem do bar olhou uma vez para ela. Foi o suficiente. A magia nada mais é do que uma mentira contada várias vezes, uma história para crianças que escolhemos perpetuar, o papai Noel invadindo a chaminé, a admissão inocente recusada, mortes sem sentido, o no entanto perpetuado somente pelo hábito. O homem barbudo, desengonçado, pedindo uma mulher em casamento em exatos, precisos e ridículos cinco minutos. Tempo o suficiente para saber sobre tudo isso. 

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