Macro
E compreendeu então que
há duas solidões, a solidão do monólogo e a do dialogo. A primeira ele começava
a sentir na proximidade com os de fora, e eram sempre de fora os que não
pertenciam ao seu núcleo. Esse estado lhe foi sempre penoso, trazia uma hostilidade
na reserva que mantinha e provocara. Um homem é sempre um estranho diante de
outro, sabia-o bem, mesmo ligando pela carne, pelo sangue, pelo instante de
gozo entre duas frações de ódio. A segunda era a sua solidão de sempre. A que
comprime, modela e torna estanques dois seres que se conhecem nos mínimos
anseios, poro por poro, hausto por hausto, até que se cristaliza entre os dois
esse fluxo de recriminações recíproco, e produto final, a pedra do silêncio.
Mas cada um sabe da presença do outro. Esse conhecimento os destrói e sustenta,
aniquila e traz certeza de uma continuidade. Nenhuma variante. Nenhum ímpeto de
adicionar um novo elemento. O mesmo nó no mesmo ponto, a se fazer e desfazer, o
mesmo intervalo de aparência para garantir uma normalidade e após o intervalo o
espaço pastoso em que se caminha, o prisma de um cômodo com sua realidade
rarefeita, um mastro invisível fincado no centro, e dois seres agrilhoados no
mastro giram e se perseguem sobre a mesma circunferência, sem nunca se alcançarem.
Samuel Rawet. A fuga.
Essa
não é uma história sobre a presença, mas uma imposição contra as epopéias
românticas. Não se destaca aqui seu rosto em qualquer lugar. Sua sombra calada
em cenários exóticos, enquanto alguma trilha sonora dá significado à narrativa.
Esforça-se para tirar da sua ausência, uma presença, retrógada, daquilo que
poderia ter sido. Se existe um objetivo nesta narrativa, este deveria ser a
lembrança, corrosiva, que elimina nossas dúvidas antes de um sono pesado e
barulhento.
Nosso
personagem se encontra em um bar qualquer. Todo bar parece igual, quando você
bebe muito- a boca seca, a sede, a angústia- e seus olhos são marcados pela
absolvição por cada garçom. Ele falava que precisava de mais uma dose. As
cadeiras de madeira estavam quebradas, e ele estava prestes a cair da cadeira,
seu corpo desequilibrado, tentando buscar sua paz. O garçom estava sozinho, e
queria ir pra casa, porque sua mulher ia desconfiar da hora extra. Começava a
articular uma mentira convincente o suficiente para chegar tão tarde. Aquele
bêbado não se movia, não queria ir embora e, indubitavelmente, percorreria
aquele bar todos os dias da semana.
Começou
a cantar, da boca de um poeta morto, que o amor da sua vida ia se casar, ele
queria impedir o casamento, dar um barraco, invadir a festa, gritar com o
padre, dar uma surra no noivo, mas ele, ainda, não podia compreender seus
sentimentos. Os copos, em fileiras, eram uma insígnia da sua dor; um pedido
contra deus e sua saúde. O convite era branco, com letras douradas, e veio pelo
correio. Seus amigos, em vão, tentaram telefonar, ele já não atendia.
Ele
não compreendia que existem duas solidões. A primeira delas é o monologo do
teatro: falamos para os outros, mas tentando escutar a nossa própria voz; o
engano de ser compreendido por um palco silencioso, imóvel e inerte. A segunda
era a solidão daqueles que se conheciam a fundo, e mantinham uma guerra fria
sob os lençóis da cama. Aquele homem haveria de apreender que sua vida era um
signo da vitória da solidão do teatro inerte. Mal ele sabia que escrevia, por
sua vida inteira, um livro sobre a voz do teatro que ninguém escutou.
A
segunda solidão tem a beleza de um pedido de casamento falso. Sendo solteiro
por um bom tempo, você se acostuma a andar ao redor de casais sem se incomodar
muito. Existe algo em comum entre estes casais que sempre me deixou, tradicionalmente,
um pouco emocionado. Eles contam histórias, independentemente da orientação
sexual do casal, sobre como se imaginam pedindo o outro em casamento. Não estou
falando daquele casamento tradicional, hierarquizado, lotado de preconceitos
anacrônicos na nossa época. Digo daquele casamento mais sutil: um metro, ônibus
ou, até mesmo, no silêncio de uma cama a dois, uma pessoa se levanta e diz que
quer casar.
A
felicidade invade seus corações aos poucos, enquanto uma das pessoas recita uma
prece, em volume baixo, sobre um amor que suga seu oxigênio. Devo admitir,
infelizmente, já senti esse sentimento. Aquele pedir em casamento, indiscreto,
correndo nossas falas cotidianas como se fossemos pobres crianças. Não importa
a nossa barba grisalha, nosso trabalho chato ou a forma com que pensamos que
envelhecemos além da conta; estamos sujeitos a este pobre e ridículo
sentimento.
Devo
começar com a segunda solidão, porque ela é o sucesso do romantismo. Não vou
apelar aos signos conhecidos- Romeu e Julieta, Neruda e Matilde, Dom Quixote e
Dulcinéia- eu não preciso ir tão longe. Quando meus avôs iam me receber, eles
sempre esperavam, horas antes, em cadeiras de plástico na frente da sua casa.
Eles ficavam horas conversando, esperando a família chegar.
Nós
nunca precisamos ligar antes da nossa chegada, minha família sempre soube que
eles estariam esperando. Subíamos as escadas desiguais até uma pequena varanda
com ladrilhos quebrados. Sentávamos em cadeiras, observando o dia passar por
entre nossos dedos, com as vozes do ano passado ressoando naquele assoalho. Uma
bicicleta se locomovia, enquanto alguns copos de cerveja eram servidos. O sol
descia com vergonha do tempo que havia passado, enquanto alguns poucos
palavrões eram atirados ao último político no poder. Se precisarmos falar da
segunda solidão, eu exijo ser colocado naquela pequena varanda, escutando os
adultos falarem sobre assunto que eu ainda viria a conhecer.
Estou
ciente que o amor nasce com metáforas, Milan Kundera foi bem claro em nos
ensinar que o maior perigo desse século foi à escolha de metáforas de forma
arbitrária. O problema é que as metáforas, muitas vezes, têm sua vida própria a
despeito da nossa vontade. Marx nunca teria desejado a União Soviética.
Nietzsche teria cuspido na cara de Hitler. John Stuart Mill nunca teria gostado
de nenhum liberal. Se o amor nasce de metáforas, o destino da nossa vida não é
nada mais que um pobre amontoado de metáforas mal selecionadas.
Para
terminar tudo que tenho a dizer sobre a segunda solidão, preciso dizer como minha
cabeça, ainda, funciona. Quando saio da cama de manhã, meus olhos vão,
lentamente, até o outro lado da cama, perto daquela mancha de vinho que você
derrubou, imaginando exatamente se você já está fazendo o café-da-manhã ou eu
vou ter que levantar antes e preparar algo. Estou com a minha família na mesa
do natal, e me pergunto se eles, também, entendem a falta que vejo naquela
fotografia. Os momentos, contemplativos,
que vivia naquela pequena varanda antiga ressentem sua falta, mesmo que você
nunca tivesse estado com meus avôs.
O
processo de memória é errático. Ele é insuficiente às minhas demandas, pois eu
não queria somente enxergar a possibilidade, queria ser capaz de retraçar o seu
semblante sobre o sofá onde meus primos menores gritam insuportavelmente.
Começo a cortar o tomate para o almoço, sem justificativa para as suas críticas
sobre meu tempero, e jogo a pimenta na panela como se tivesse declarando guerra
ao jantar. O processo de memória me leva até o lugar em que soube do seu casamento,
os gritos dos prisioneiros ressoando pela barras de metais. A imagem perfeita
de uma vida em conjunto que nunca pode existir. O processo de memória me leva a
essa mesa de bar, e a essa pobre máquina de escrever.
Quando
me colocaram na prisão pela primeira vez, comecei a pensar sobre este
sentimento de perda. Sozinho numa cela, um homem tem muito no que pensar.
Imaginei dezenas de mulheres sentadas comigo, recitando pequenas preces sobre
nossas infelizes vidas em comum. Quis retirar tudo do começo. Foi nesse dia que
comecei a me corresponder com uma mulher pequena, silenciosa e cheia de barulho
por dentro. Lembro-me da sensação de completo deslumbramento. Depois de cometer
pecados que nem o mais solicito dos cristãos perdoariam, pareceu-me ridículo ter
esta oportunidade. Mesmo assim, aproveitei cada momento. Alguém havia invadido
minha proteção, agora, eu denunciava meus segredos como se fossem uma resposta
treinada a uma pergunta que nunca chegou a ser posta.
Não
posso perdoar esta foto pela mesma razão. Quando alguém diz que te ama por
anos, você acaba acreditando. O mais crítico dos céticos ainda acredita em algo
repetido tantas vezes que passa a fazer sentido. Se alguém lhe diz uma
narrativa boa o suficiente, você acaba acreditando. Nós somos, relutantemente,
seres que veneram alguma coisa: um deus, uma pessoa, uma religião ou um estado.
Pesamos na balança nossos desejos contra o peso de um ideal. Eu não queria
acreditar, mas depois de tantas cartas, afetadas, cheias de sentimento, acabei
cedendo à bela narrativa. Acredito que todos passaram por este sentimento. A
necessidade de se agarrar a um sonho que faça nosso dia-a-dia ser grandioso.
Não
pude aceitar aquela foto. Alguns dias antes de sair da prisão, ela me mandou
uma foto. Dizendo sobre o seu casamento. As palavras me falham a memória, mas
elas não foram importantes. Por trás de todo aquele fraseado bonito, havia a
mensagem que estaríamos sozinhos, apesar de todas narrativas que nos contam.
Ela
havia pintado um quadro impressionante sobre uma história: duas pessoas,
finalmente, se encontram num lugar sem comunicação, cheio de violência, e
incompreensão, um porto seguro no meio do caos controlado que eles chamavam de
vida.
Aquela
foto dizia o contrário, ela era mais forte que todas as palavras colocadas nas
cartas. Era uma carta de guerra. Aquele homem havia esperado, sorrateiramente,
por aquele momento. Ela ficou surpresa ao saber que ele havia matado alguém
para permanecer na prisão. Não havia nada fora daquela cela para ele. Aqueles
pequenos vinte metros quadrados que o separavam do resto da civilização.
Quando
os guardas pediam para que ele tomasse um ar pelo pátio da prisão, ele nem ao menos
se movia. Nenhum guarda ousava forçá-lo a sair. Passou o resto dos dias até sua
morte naquele confinamento mental, sabendo, de passagem, que não havia fuga da
falta de narrativas.
Pergunta
Surpresa:
Digamos
que ele tivesse saído da prisão. Descoberto quem era o marido. Planejado uma
pequena prisão. Conseguido a quantidade de cocaína o suficiente para que seja
enquadrado como intenção de venda. Descobrir como arrombar o carro moderno que
aquele homem tinha. Finalmente, chamar a polícia para denunciar uma venda de
drogas. Caso ele fosse, realmente, capaz de arquitetar esse plano, sem ser
pego. Estaria ele certo ao executar o plano, ou se manter, estoicamente, na
prisão. Pergunta surpresa da semana.
Eu não julgaria nenhum dos dois homens, ela disse, enquanto levantava-se da maca do seu quarto. Havia se internado voluntariamente quando seu marido havia sido preso por posse de cocaína. Existem certos pesadelos dos quais não conseguimos acordar. Ela acordava, todo dia, e passava horas ao telefone com suas amigas próximas. Amigas que tinham vidas próprias, mas que agüentavam aquele falatório, incessante, sobre a prisão do seu marido. Era conhecido na rua que ele era um famoso usuário de drogas pesadas com histórico de traições em motéis baratos da cidade, mesmo assim para aquela mulher, ele poderia ser considerado um santo.
Ela
havia construído um sonho ideal sobre o seu parceiro e exigido, cada parte de
si, para manter aquela história. O problema dos romances vendidos hoje em dia é
que eles apelam a uma falta de criatividade inerente ao romantismo: Zeus, num
dos seus piores humores, decidi, rancorosamente, punir os seres humanos por
serem fortes demais, despedaçando seus corpos em pequenos pedaços, amaldiçoando
a raça humana com a sina de ser de forma perpetua incompleta. Consigo acreditar
até esta parte da história. Fico confuso com a continuação que nossa missão é
ser completo. Desista ser perfeito, comprar a vida ideal, e ser um ser humano
bom; ninguém aqui, neste planeta, consegue cumprir esse papel. Morra sem seus
sonhos irrealizáveis destruídos ao redor da rodovia do seu sangue na rua.
Complete a sua incompletude. Grite contra Deus. Eles não estão esperando por
isso.
Ela
lembrou que seus amigos estavam começando a ficar cansado das suas ligações no
meio da noite. Ninguém agüentava aquele falatório frenético sobre um pequeno
crime, que estava prestes a ser julgado. Ninguém mais tinha paciência para
lidar com as loucuras internas daquela mulher. Ela, desesperada, gritava para
suas amigas, por favor, agüentem por mais alguns minutos, eu posso ser mais
engraçada. Preciso de um pouco de atenção. Exijo um pouco de respeito. Os
médicos diziam que ela precisava se acalmar, mudar o ritmo da sua vida, parar
de tocar o mesmo disco arranhado.
Seus
amigos pararam de atender ao telefone. Os chefes do manicômio pediram
medicamentos mais fortes. Ela se sentia constantemente presa num reino de
sonhos etéreos. Sonhou, em primeiro lugar, com a sua infância, o dia em que
seus pais decidiram se separar, os gritos ecoando pela casa, os móveis
deslocados pela briga corporal. Sentia no ar cheiro de sangue e ressentimento.
Desejou construir uma vida que fosse contrária aquele sentimento. Todo castelo
de cartas está morto no momento em que é criado, foi isso que ela quis dizer.
Nenhum amor dura uma vida inteira.
Ela
lembrou-se de um menino inglês que fazia grandes atrações para os seus amigos
se colocando em perigo mortal. Ele cresceu e se tornou um símbolo de toda uma
geração de músicos, seu suicídio foi considerado o fracasso dos anos setenta.
Logo após, lembrou o compatriota americano que jurou dar uma volta ao redor do
mundo para dar coragem ao seu país na segunda guerra mundial. Ele morreu no
meio do mar, tentando trapacear na competição, acabou tirando sua roupa,
enlouquecendo, e tentando encontrar a raiz quadrado de zero.
Ela
não sabia aonde queria chegar, seus médicos a encontraram cheia de remédios, e
prestes a perder seus sinais vitais. Nem na falta da sua vida, ela desejou
irritar o poder do sanatório. Não podia ficar em paz nem na sua última
respiração.
Pergunta
surpresa número dois.
Traído
pela sua namorada de cinco anos, o homem, machista, decidi que não pode matar o
amante, simplesmente, porque ele não queria ficar na prisão. Sabendo deste
motivo egoísta, ele paga alguns mafiosos locais para darem uma surra no amante.
Depois de ir ao hospital, o amante paga os mesmos mafiosos para a morte do
mandante. Seria o homem traído ou o amante que teriam justa causa sobre o
problema. Ou nenhum dos dois
Existe
um texto perdido de um homem que se enforcou, quando ficou famoso e, estava
prestes, a escrever sua obra-prima. Ele argumentava que muita gente sabe que
existem partes sombrias e violentas sobre a existência humana, mas pouca gente
viveu isto. A diferença significativa entre quem acha que as pessoas podem ser
cruéis, e quem tem a certeza absoluta que elas podem ser. Os campos de
concentração foram um exemplo óbvio da capacidade de crueldade humana. Vários
homens produziram culturalmente sobre seus traumas, a capacidade de retiraram
qualquer vestígio de humanidade dos seus rostos, a humilhação pública, a
tortura psicológica, o descontentamento silencioso.
Daniel
Foster Wallace argumenta que esses homens são melhores que os outros, porque
eles já estiveram do outro lado da crueldade, eles sofreram e puderam
presenciar com seus próprios olhos o que seus pares eram capazes de fazer. Isso
transforma alguém, ele é capaz de saber que pessoas podem ser tratadas como
meros objetos, sem nenhuma adivinhação. Ele tem que escolher, pacientemente,
todo dia a tentar ser compreensivo com outras pessoas, porque a ele não foi
dada a mesma opção.
Problema
surpresa número três.
O
homem sai da prisão, mas entende que o marido não está preparado para a vida.
Por isso, decidi mostrar o lado sombrio, aquilo que ele estava acostumado no
seu trabalho vendendo drogas. Ele espanca o marido até os limites da sua
humanidade. O sangue escorrendo pelos seus braços é terrivelmente pacifico. O
prisioneiro estaria errado ao criar um melhor marido para a mulher dos seus
sonhos ou nós estaríamos errados a criar uma civilização que esconde o pior de
nós dentro dos nossos pesadelos.
Pergunta
surpresa número quatro ou o final de um conto incompleto.
Existe a possibilidade que o homem, finalmente,
tenha saído da prisão. Escolheu não procurar nem a mulher, ou seu marido.
Sentou-se numa cadeira, e começou a organizar sua vida. Conseguiu um
apartamento e um trabalho. Viveu uma vida simples, sem grandes surpresas.
Correu maratonas. Descobriu como tocar o violão. Teve alguns romances, mas
nenhum que fosse suficientemente forte para ser narrado. Tendo isto em vista, o
homem viveu o pesadelo de todos os romancistas, uma narrativa tão simples que,
dificilmente, poderia ser tida como material criativo. Mesmo assim, talvez,
esse seja o final de todos os contos incompletos, sem nenhuma morte, explosão
de carro ou final surpreendente. Sabendo de tudo isso, o homem esteve certo em
abandonar seus fantasmas ou, contrariamente, ele deveria ter aplacado sua
vingança mesquinha sobre o fraco marido. Ou, ainda mais, deveria ter ele vivido
uma vida impressionante, sem televisão, e cheia de vida, plenitude e alegria.
Ou isso nunca nem ao menos foi possível
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