Exploradores do abismo
Preciso
que você saiba se algo acontecer, não é sua culpa. Não somos responsáveis por
outra vida que não são as nossas. Não temos qualquer débito com outros, saiba
disso, desde já. Eu sempre namorei o abismo, um passo em falso, e eu cairia.
Sei disso desde jovem, desde aquele dia que peguei o estilete e meus pais
tiveram que me levar ao hospital, às pressas, enquanto se perguntavam o que
havia de errado. Olhei o mar, como um namorado perdido, se eu me acostumasse
com ele, nós seriamos o mesmo ente, eu estaria mergulhado em uma morte
qualquer, dolorosa, injusta, antes da hora, mas não importa, temos que saber
que não importa. Amanhã o sol levanta do mesmo jeito, faz o movimento ridículo
de elipse, seguindo alguns ditames físicos. Sabe-se que a felicidade é uma
guerra, mas, jovem, eu já sabia que não queria lutar. Sorria para os mendigos,
os malucos, os derrotados e os drogados. Sabia que era do time deles, e que não
haveria final feliz, como num conto da Disney. Meu final seria exato. Escrito
em algum lugar, sobre a parede, poucas palavras pedindo desculpas aos meus
pais, discutindo que não foi minha opção, era a única saída. Para um ateu, não
é deus que encontramos no final, somente encontramos um vazio, escuro, sombrio,
que nos diz que não existe mais nada. Um sol se levanta, ignorando nossa falta,
nossa respiração, nosso amor. A natureza não se importa. Eu peço que você se
esqueça, como um sonho ruim, um pesadelo, uma nota sobre as sombras, que você
não merecia escutar, meu nome ecoando num som nulo, em uma esquina vazia, uma
platéia silenciosa, em direção a lugar nenhum. Peço que você entenda.
Menos
álcool. Menos cigarros amassados na janela. Menos drogas na corrente sanguínea.
Abandonou a vida acompanhando bandas de rock pesado, guardava, ainda, sua
guitarra e baixo na parede da sala, esperava um dia fazer uma banda diferente.
Poucos amigos, bebendo em um final de noite, na sua casa, enquanto escutavam
seus CDs favoritos. Eles eram, sem saber, felizes, tocando um punk terrível,
fora do tempo, sem ao menos dinâmica. Eles riam como os velhos punks, sem saber
por que estavam ali. Estavam tocando para uma platéia vazia.
Acordava
cedo, e começava o regime de exercícios. Lembrava-se que um ano antes, agora,
estaria bebendo a primeira cerveja do dia acompanhada com um copo de cachaça.
Estaria desesperado atrás de algum sentimento; uma sensação que pudesse
tomar-lhe de dentro este sentimento inefável. Seus alunos começaram a perguntar
como ele começou a lutar. Ele disse, sábio, que nunca tinha tido um começo, sua
luta tinha começado no seu parto, que durou três dias, onde ele teve que brigar
pelo poder de respirar. Sua mãe dizia que era mais fácil matar os médicos
adultos do que aquele pequeno bebê. Na escola, ele foi o primeiro a começar as
brigas, sangrava, sem sorrir, sem dar satisfação a ninguém. Eu lutei desde que
nasci. Professor, nós apanhamos, ensine algum golpe legal. Vou ensinar a vocês
o melhor golpe. Ser feliz é o melhor golpe que você dar em qualquer valentão e,
caso isso não dê certo, você sempre pode usar um bom chute. O menino sorria,
sem jeito, esperando que aquilo lhe desse confiança. O professor só queria que
ele entendesse que ele não tinha se tornar aquilo que ele queria destruir. Não
temos que nos tornarmos nossos inimigos, porque, se não, perdemos o porquê
estamos lutando. Vamos lá, só um golpe, pare de suar, não é hora de parar para
descansar. Vocês podem mais.
Qualquer
homem vendo aquela cena, teria que rir. Um ano antes, ele estaria tomando o
primeiro ácido do dia. Respirando sem jeito. Montando o palco para a banda, e
ficando nos fundos para não escutar a caixa estourada do guitarrista. Estaria,
agora, abrindo alguma bebida dada gratuitamente pela organização. Não comeria
nada e, provavelmente, estaria fazendo sexo com uma groupie. Mulheres sempre
pareceram fantasmas naquele cenário: elas viam e saiam, sem deixa rastro, como
ecos de um pesadelo, sem muito suspense, acompanhadas de leves suspiros, em
caminhões imundos. Respire fundo, moço. Você não sabe o que está dizendo.
Ele
tomava uma ducha e ela ainda estava dormindo. Sem saber que o homem na sua
frente seria, eternamente, um monstro. Ele cobriu seu corpo com o cobertor,
começou a fazer o café da manhã e colocou uma música com volume baixo. Ela
levantou-se e foi até ele, perguntando o que haveria para comer. Ele disse que
para ela não saberia, mas ele comeria torradas com suco fresco. Ela olhou, com
cara de má, com a pretensão de dominar aquele pobre sujeito. Ela não sabia que
ali vivia um homem incontrolável, desajeitado e, terrivelmente, solitário. O
quarto estava lotado de discos antigos, e instrumentos velhos. A parede era
azul, não havia televisão. Ela ficava abraçada nele, enquanto ele preparava um
pão na panela. Tempero especial. Ele, talvez, nunca aprendesse a cozinhar. Acho
que isso já não importava.
Filosofia,
alunos. É a arte de pensar sobre o mundo. Hoje em dia ela perdeu muito do seu
significado, porque os homens tentam ressuscitar aqueles que morreram. Vamos
deixar enterrados nossos mortos, diria Sócrates. Deixar que eles vivessem
naquele local em que o pensamento deles e a sociedade tinham significado. O
sujeito moderno foi pensando em castelos. Jeremy Bentham no seu belo castelo
aristocrata, vivendo como Platão. Descartes isolado da sociedade. Montesquieu
em silêncio. Sejamos sinceros, a filosofia tem medo da política desde o seu
nascimento, mas a política não é somente o estado. A política é acordar de
manhã e ter que estar num trabalho. Ela é ter que responder, constantemente, ao
que lhe perguntam. Borges sabia disso, por isso pedia aos seus alunos para
lerem textos com ele, mesmo ele estando cego, queria escutar a rima dos seus
poetas mortos. Alunos, aprendam a reler mais do que ler. Não leiam muitas
obras, mas entendam as poucas que vocês amarem.
Entendam
os homens que vivem por trás delas, não os matem somente porque o autor já não
existe. Sejamos francos, a parte de nós que resiste, é a imortalidade. Sim,
Kundera, como eu haveria esquecer-me de você. Existe a memória naqueles
próximos afetivamente, mas existe, também, a imortalidade objetiva da obras
destes autores. A metáfora do que existe depois que o corpo cede, um céu de
autores ateus. Luto por esse céu, como se um ensino fundamental tivesse sido o
prelúdio perfeito para esta guerra. Estou te esperando em algum lugar, em que
meus autores favoritos se reúnam, e nós possamos abandonar este planeta.
Viveríamos num paraíso daqueles que não tem para onde ir. A total solidão
daqueles que já sabem que não podem resistir. Iríamos juntos em direção ao
abismo.
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