Mensagens no fundo do mar.
Existe
um mundo imaginário além de qualquer e toda pretensão, em que um dia nós dois
nos comunicamos com mensagens enroladas em garrafas pequenas jogadas ao mar.
Este conto é uma história de como o desenrolar de tais mensagens se
desencontrou, e acabou jogado ao relento de um mundo inimaginável.
-Não
acredito que você imaginou possível.
-O
que?
-Nós
dois sentados, falando, pausadamente e calmamente, de tudo que está.
-Porque?
-Meu
sangue é vermelho, zanza rápido pelas minhas veias, e, raramente, respira com
calma.
-Seu
sangue respira?
-Você
entendeu.
-Você
deveria ter calma, afinal o que tem demais?
-Já
imaginou pedir ao seu futuro assassino que ele converse numa mesa de bar com
você?
-Não.
-É
a mesma coisa. Nós não chamamos para conversar aquele que nos colocou num
redemoinho de destruição.
-Você
pode se culpar por isso, sabe.
-Entendo.
Admito minha culpa, se você admitir a sua.
-A
minha o que?
-Culpa.
Este silêncio se formou no fundo da
sua cabeça, quando ele percebeu que havia imaginado aquela conversa dentro de
si mesmo. Um grande teórico um dia disse que temos conversas com a memória de
outras pessoas na nossa mente, e que isso é uma felicidade que o mundo moderno
nos trouxe.
A
ideia de diálogo com grandes espíritos vem de longa data, Borges repetia
incansavelmente que qualquer bom livro era uma produção do espírito. As conversas
dentro da gente podem ser infernos inacabados. Borges mencionava que tinha dois
sonhos, recorrentes, o espelho e o labirinto: ambos eram a mesma coisa.
Qualquer dois espelhos refletidos formavam um labirinto, onde o Minotauro está
esperando calado e paciente com as lentas respirações daquele que dorme.
Havia algo de caricatura naquela
imagem. Ele sorrindo placidamente, enquanto duas ou três mulheres discutiam
qualquer bobagem. Um retiro espiritual dentro de si mesmo. Esta história não é
do fracasso, mas do cômico e trágico. Quando jovem, este menino foi
ridicularizado pelo tamanho, imaturidade e até mesmo o imenso aparelho de
madeira que apoiava suas costas. Adultos deveriam ser condenados a penas
drásticas pelo tipo de tortura que ele passou. Sempre o último a conseguir
algum avanço com o sexo feminino, o rancor se manteve instalado naquele corpo
deslocado.
Anos depois vemos outra imagem, o
número de mulheres que se desloca pelo seu apartamento causa um sorriso franco
e aberto do seu porteiro. Seu vizinho, militar, começa a piscar e sorrir toda
vez que o encontra no corredor. Comenta que as paredes são finas, tudo bem, eu
entendi, seu militar. Pelo menos, ele havia parado de falar sobre seus
problemas conservadores frente ao sonho que ele tinha de Brasil. Contudo,
aquele garoto não sorria mais como antes; ele não sorria como o garoto com o
aparelho da coluna que não sabia gesticular frases inteiras para mulheres que
nunca tinham a coragem de lhe olhar no rosto.
Havia
algo de tragicômico no jeito em que seu sorriso havia sido diluído, e na forma
com que diferentes mulheres encontravam um porto rápido de segurança entre um pequeno
número de horas dentro daquele apartamento. Irônico, seu sucesso, diriam.
Sarcástico e amargo, aquela infelicidade daquele que consegue o sexo, pois em
último caso tudo que resta da sombra de dois corpos se movendo no falta de luz
é um riso. Um som deslocado do apartamento ao lado, ou mesmo, um cheiro
diferente invadindo as colchas no dia seguinte.
Gabriel
Gárcia Márquez, vulgo Garbo, tem na sua melhor obra a descrição de dois mundos
românticos. O primeiro deles é o homem solitário que transforma a sua vida numa
piada de sucesso, por causa do seu rancor e ressentimento, até atingir um lugar
que seu sucesso transforma ele mesmo num mito além do mal que havia lhe
formado.
No
outro lado, existe o casamento feliz de conveniência entre duas pessoas, e as
maravilhas de uma existência em comum. A beleza de Amor nos tempos de Cólera
está nos dois mundos narrados, como se fossem um complemento da existência do
outro; como uma pequeno aquário em que dois cenários divididos no meio
conseguissem conversar, mas nunca se tocar além dos limites dos contornos do
vidro.
A
primeira notícia que o médico havia lhe dito é que com esse andar da sua vida,
ele não deveria durara além dos quarenta anos:
-Bem,
o Kerouac aguentou até os sessenta, estamos cruzando os dedos. Hemingway
aguentou até o tiro final. Digo, estou em boa companhia. Salinger somente parou
de escrever, quando já estava exausto e, finalmente, conseguiu entregar os
pontos e trazer seus livros a luz do dia, mesmo que posteriormente a sua morte.
-Você
não entende o que eu estou dizendo.
-Entendo
perfeitamente.
-Eu
tenho que relatar tais resultados a um responsável.
-Eu
sou o responsável. O corpo é meu afinal.
-Você
não pode estar falando sério.
-Confidência
de médico e paciente, processo, e tudo mais.
-Você
está brincando.
-Não,
eu pensei em tudo com devida atenção.
-Bem,
o que você ganha com isso?
-O
maldito controle. Faz muito tempo que tudo parece, excessivamente, fora do
controle. Aqui, bebendo, usando, ou fazendo o que diabos dá na minha cabeça, eu
me sinto no controle.
-O
que fez você mudar tanto?
-A
culpa?
-De
que?
-Não
sei. Esse é o problema doutor. Um total pneumotórax.
Anos depois, sua mente estava limpa.
Sem drogas e álcool fazia meses. Meditava cinco horas por dia, nunca se
comunicava com muitas palavras. Não inseria carne ou leite no seu corpo fazia
anos, e seus olhos criteriosos repetiam uma paz interior de dar inveja. Ele
quis se tornar uma estoico, um homem que controlava seus próprios pensamentos e
dores. Mesmo quando ele abraçava a destruição, era pelo motivo repetido. Ele
queria ter o controle, a vontade e a determinação. Não importa se estava calmo,
meditando sob uma pedra ou tocando punk com o efeitos de drogas e álcool. Era
uma questão de criar a si mesmo, apesar dos pesares. Era isso que ele tentou
explicar, mas não conseguia. Secava sua garganta tentando passar a pequena
mensagem numa garrafa no meio do oceano, talvez fosse por isso que parte de si
ainda sangrava.
O
espartanos eram homens notáveis, que desde jovens era confrontados da vida
enquanto guerra. Pequenos, eles eram jogados na natureza selvagem para saber se
eles tinham o que era necessário para sobreviver. Importava mais saber quem
você era do que, necessariamente, conhecer o que você era. A distinção é
importante. Quando perguntaram para um Espartano porque ele tinha outros para
trabalhar nos seus campos, ele, rapidamente, respondeu que era para cuidar de
si mesmo. O conhecimento era visto com olhos perigosos, a conclusão lógica é
que pensar em si mesmo estava desligado da obsessão compulsória de esclarecer
cada pensamento.
A
luta era mais importante do que o pensar. Não é coincidência que Rousseau
quando compara os espartanos com os atenienses, comenta que os primeiros são o
modelo que ele tinha em mente, enquanto os segundos eram fascinados pelas suas
próprias perseguições espirituais intermináveis. A questão sempre foi a busca
de si, mas a resposta era como serpentear por esse caminho. Eu buscava aquela
garrafa em que pudesse decodificar um último papel pequeno para ser perdido no
oceano. Lentamente, o mar, desfigurando meus sentidos, retiraria àquela pequena
mensagem e gritaria em voz alta seu significado.
O
legado que quero deixa nesse pequeno papel tem um quê de ridículo. Deixe-me
repetir mais uma vez, uma característica peculiar imensamente patética. Escrita
numa caligrafia indecifrável de sentimentos que já não pousam seus sentidos
sobre mim, escrevo como exercício de nivelamento. Escrevo como serviço de
diário circular. Escrevo para tentar lembrar que um dia já fui diferente do que
hoje em dia sou. Com esse sentimento recoloco palavras dicotômicas no enigma e,
espero, que, de uma vez por todas, o pneumotórax passe:
Daria
cor a cada lugar. Guardaria o seu poema. Em um quadro no quarto, um quadro na
cama. Você se pinta de cores diferentes e preenche cada buraco, problema,
fraqueza e sentimento. Não tenha planos, pois eles não vão acontecer, você
caminhará até o inferno pelo que sua mente suja está pensando. Você olha, ela
não olha, não uma vez, não duas. Despeço e fecho, o quarto do quadro, o cômodo
um incomodo, você nunca visitou. Você é o grito que ninguém ouviu no teatro, e
as luzes todas se apagam, o amor no escuro, e não, no claro, é triste, meu
filhos Carlos, e ninguém sabe, nem saberá, prepare-se para bodas, será que vão
vir, quadrilha infinita de versos incoerentes, peço um pedido, restrito,
ridículo e perdido, para que caso você possa se lembrar, não esqueça de lembrar
que te esqueci, ou seja, no final, tudo sempre sobra uma pobre garrafa com um papel
remanescente de poemas quem um dia fizeram, ou queriam fazer, sentido. O tempo
é uma presença cruel, ou cruel é a presença do tempo. Tudo que está perto se
desloca.
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