Jorge Luis Borges.
Borges
disse ter encontrado a si mesmo em uma praça. Reconheceu-se nos erros do seu eu
mesmo jovem e explicou como a cegueira viria a ser um lento entardecer, não
queria assustar seu passado com seu futuro. Com palavras rígidas e
materializadas, quis argumentar a utopia de um homem só cansado. Se essa utopia
fosse possível, é porque no futuro existiriam somente indivíduos, se é que algo
existisse.
Sentado
na cadeira de faculdade, um homem corpulento se aproxima, e se senta com olhos
radicalmente sérios. Sua roupa é ridícula e sua fala parece se arrastar como se
fosse um discurso proclamado, pergunto a ele seu nome:
-Eu
sou você.
Se
por um momento fico assustado, digo que isso não é possível.
-Mas
afinal, o que é possível nos dias de hoje?
Enxergo
por trás da barriga, uma possível explicação de quem seria aquele estranho
senhor. Teria levantado, se não fosse por um pequeno aperto no meu braço:
-Lembra
de como você costumava pensar que toda a história do mundo vinha a ser os entes
imaginados virando ar. Uma narrativa de um homem indo em uma caverna que
haveria de ser sua cabeça, mas tão somente isso. Porque não havia nada mais.
Uma explicação filosófica para sua própria psicologia.
Continuou:
-E
você roubou um livro de cada grande biblioteca que visitou. Voltou anos depois,
colocando duas obras em troca de uma roubada. Fez esse processo até o absurdo,
e se sentiu recompensado pela inutilidade do ato.
-Tudo
bem, você me vigiou com precisão, leu o que eu escrevia, ou conversou com
alguma ex-namorada.
-Sua
primeira lembrança é um rosto focando os olhos em você.
-Tudo
bem. Como isso é possível?
-Não
sei.
-Eu
faço sucesso?
-Mais
do que você imaginava, menos do que você queria.
-Eu
caso alguma vez?
-É
complicado. Sim e não.
-Eu
sou feliz?
-Lógico,
no intervalo de quatro minutos, espero que você feche os olhos e aproveite cada
segundo.
-Eu
fico cego?
-Não,
você enxerga tudo muito bem até o final.
-Sabia
que Borges ficou cego logo quando era responsável por um dos maiores acervos da
Argentina?
-Eu
sei, a gente tentou achar o livro da areia por muito tempo nas seções que ele
costumava visitar com seu pai, pois tinha vergonha de pegar os livros “reais”,
então ficava alugando enciclopédias. Diz que foi extremamente emocionante o dia
em que chegou a letra “R”.
-
Eu chego algum dia a parar de sentir dores?
-Mentais
ou físicas?
-Faz
alguma diferença¿
-Acho
que não.
-Eu
tenho filhos?
-Sim.
-Eles
gostam de mim?
-Na
maioria do tempo.
-Bem,
parece uma vida boa o suficiente.
-Teve
seus momentos.
-Algum
conselho para o seu eu mesmo do passado?
-Eu
diria para dormir mais.
-Parece
legítimo.
-Uma
última coisa.
-O
que?
-Acorde.
Então, de repente, e não tão mais do
que um instante, abri os olhos. A visão sempre foi um dos problemas centrais
para a vida. Para onde direcionamos nossa mente, para que direção nossa visão
almeja chegar; foi ver e não tocar que delimitou as linhas detalhadas do nosso
real. Foi isso que eu pensei, quando fiquei acordado, imaginando se algum dia,
teria sido eu a ter o sonho, ou um simulacro de uma história que já foi
contada.
A utopia de um homem só cansado é
mais do que a missão que Thomas Morus se colocou ao fazer quando criou sua
comunidade perfeita. É um estado de espírito retomado por diferentes autores,
cuja paciência parece se esgotar lentamente entre intervalos de interrupção.
A
utopia era a concepção grega que “não há tal lugar”, não temos para onde correr
dos círculos constritos. Entretanto, ao pensar em Borges levantando de manhã
para dar aula, dizendo que nunca ninguém leu mais que doze livros, se
prolongando no significado das palavras, que elas estão vivas e são
reinventadas, a utopia deixa de ser aonde não há tal lugar para um simples
entardecer onde a visão se cansa aos poucos até enxergar cada vez menos. Por
isso, fundo um grupo, de um homem só, que está cansado e escreve no quadro em
cima da sua cama que não há tal lugar.
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