Congresso geral do Fracasso.
A
menina senta na frente de um grande televisor. Está lendo os documentos da assembleia
na França na época da revolução. Obcecada pelo seu processo, relembra
mentalmente de tudo que poderia ser significante naqueles documentos. Coloca em
pedaços uma história do que poderia ter acontecido. Se o rei não tivesse
insistido em fechar qualquer discussão, se sua cabeça não tivesse sido
decapitada, se a França fosse a Inglaterra. Revoluções em silêncio na cabeça
dos tímidos. Pessoas obcecadas com outro tempo tem algo de volta a um período em
que não éramos obrigados a viver no presente.
É
uma ideia recente que devemos viver o nosso próprio período; vários homens
literatos trancados em seus castelos discordariam radicalmente da ideia que
teríamos que viver nossa própria época. Penso aqui em Maquiavel se erguendo com
vestes antigas implorando para ser escutado. No entanto, a realidade não
responde aos nossos pedidos. No máximo, ela tenta nos fazer pedir. No momento
de troca, nos vislumbra com uma possibilidade. Hoje, no congresso do fracasso,
desejo falar sobre a união.
O
homem recupera seus documentos numa longa pasta com marcadores vermelhos e
palavras em letras caixa alta. Começa a dizer, lentamente, que a história
que ele deseja contar e o movimento histórico que ele estuda são, basicamente,
o tema do fracasso. Trancado no seu castelo, pedindo ajuda a seus pupilos, o
homem anda como Sócrates ao redor dos seus discípulos. Nervoso, limítrofe e
desengonçado. Bem, hoje, venho aqui dizer aos senhores que a história que venho
contar é do fracasso. Na Grécia ser estrangeiro era fracasso. Na idade média
nascer na casta errada era o fracasso. Hoje em dia, acho que o fracasso é nossa
própria concepção de presente. Voltarei logo a seguir nesse ponto.
Sentado
na sua mesa, ele escrevia à mão suas memórias. Começa dizendo que sempre pensou
que seria importante por ser inteligente. Lembra que nunca teve relacionamentos
afetivos. Disse um dia que gostava de uma mulher. Em resposta, ela disse que
ele não poderia desperdiçar seu tempo com assuntos fúteis. Desde então, ele
viveu sobre a regra que qualquer linguagem que não fosse racional era inútil.
Suas lágrimas expostas a calmaria da sua vida expunham um elemento daquele que
não acredita mais poder conter os sentimentos. A humanidade deveria, logo após,
ser totalmente racional.
Desculpem-me
se me detenho demais nesse ponto, mas o fracasso é o tema da nossa palestra. E
se tornou, ao redor do tempo, o tema da minha vida. Ele disse essas palavras
fraquejando. Levantando um copo de água. Respirando fundo. Continuo sua
palestra como se nada tivesse acontecido.
Na
Inglaterra da segunda guerra mundial, um homem sem experiência apostou que
conseguiria navegar ao redor do mundo. Fez todos acreditarem na sua façanha, e
viajou por meses sozinho em um barco no meio do nada. Displicente, tentou trapacear,
enquanto seu barco afundava nas sombrias águas do mar. Retornou antes do
momento de saída. Infelizmente, sua sanidade não haveria de durar tanto tempo.
Ele morreu nu tentando fazer a raiz quadrada de zero. Sim, meus amigos, não se
enganem, a minha história assim como a de vocês já foi contada algumas vezes.
No discurso do século XVIII, a única oposição a morte do tempo era a
circularidade da guerra. O fracasso é um desses fenômenos impressionantes em
que um tempo inteiro se encontra em um discurso.
Falando
do movimento que me interessa desejo contar a história de um pai e um filho.
Ambos foram criados sobre a égide da revolução francesa. Acreditavam piamente
no poder do mundo em se transformar em algo melhor. Tendo isso em vista, o pai
isolou o filho de qualquer relação afetiva e o transformou em uma máquina de
pensar. Autômatos de pensamento deveriam ser feliz. Não entendo de onde a
filosofia pode tirar essa concepção, mas acredito que um dos seus erros foi
ligar o que deveria acontecer em nível social com a felicidade de uma pessoa.
Precisa-se
delimitar melhor esse ponto. A menina sentada na frente da TV nunca poderia ser
o padrão para todos que vivem. Na verdade, retiro o que disse. Ninguém deveria
formar esse padrão. Se o branco, rico e escolarizado se tornou a regra do que
deveria ser bom, então temos um longo processo de degeneração do que somos.
Lembro-me de Kafka imaginando que a vida em sociedade era tão deplorável que o
melhor era se esconder. Escapar. O movimento que tento apresentar morou em um
castelo em plena época da burguesia. Somos todos o passado se repetindo em
saberes ignóbeis.
Finalmente,
desejo encerar tal fala com um simples ponto. A união. Sempre detestei essa
palavra. Ela quer dizer que nós diminuímos o que somos para encenar em farsas
alheias. A união sempre foi o signo daquele que domina; aquele que conta o
passado tentando delimitar sua própria culpa. Se somos o desperdício de
energia, logo, nós somos a união.
Gabriel
García Márquez conta uma história de amor em que existem duas realidades: o
homem que espera a volta de alguém que nunca esteve presente, e o homem que
vive a realidade do seu amor. Existe uma mensagem por trás disso, eu diria que
existe a noção que o amor vivido era o melhor amor. Posso dizer que discordo
radicalmente de tal concepção. Assim como toda a história, o que importa era o
que poderia ter acontecido, e muitas vezes o que aconteceu foi secundário.
Assim, como me levanto de manhã para trabalhar, eu poderia muito bem me
levantar para destruir o mundo ou para terminar com a minha vida. Sempre foram as possibilidades, as
interrupções e as destruições que possibilitaram a mudança. A estabilidade
corresponde, boa parte das vezes, na manutenção de prisões de palavras. São
onde a vida vai parar morrer.
Por
isso queria deixar aqui exposto que o fracasso, a morte, e a união são símbolos
da mesma palestra. Elas convivem na mesma mente para determinar seu futuro,
passado e presente. São o pobre homem tentando fazer a raiz quadrada de zero.
Até o sol e a água do mar que ele havia ingerido terem tornado sua mente em
corpo na história da humanidade.
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