Memória.

            
O problema é que não sabemos se poderíamos voltar. Sentados juntos fazemos promessas impossíveis de serem cumpridas. Foi isso que ela repetiu quando pegou minha mão. Sorrisos secos deveriam ser vendidos na barraca da minha escola. Inconsequente com as vascularidades daquilo que me propunha a fazer; vinha escrevendo tal história desde a primeira vez que comecei a andar. Diga-me sobre seus últimos meses. Por favor, não omita nenhum detalhe. Minha cara, os minúsculos remanescentes hão de estar em todo e qualquer lugar.
            
Ele bate com força na porta do apartamento. A madeira ressoa com um barulho ensurdecedor. Horas batendo na mesma porta, esperando a mesma resposta. Finalmente, um homem abre a porta com seus braços sangrando. Um grito de susto. O dedo indicador estendido sobre a boca para indicar o silêncio. A figura mítica do escritor desesperado. Respira fundo sobre aquilo que poderia ser sua vida.

-Você terminou?

-Terminei.

-Porque você está sangrando?

-Não acredito em livros que não são feitos de sangue.

-Há quanto tempo você não sai de casa?

-Dois meses e meio.

-E você acha isso normal?

-Não.

-Eu posso ler?

-Calma. Eu estou reescrevendo ele mais uma vez.

-Quantas vezes você já fez isso?

-Algumas.

-E os riscos no seu braço?

-A cada vez que reescrevo a história, eu faço um risco de sangue.

-Isso não faz sentido.

-Eu estou escrevendo uma linha da história; um mundo alternativo em que qualquer coisa possa acontecer. Pego meus traçados e misturo com minhas veias. Imagino que as palavras pertencem ao meu corpo. Elas têm vida e se animam com meu processo. Cada linha é uma metáfora pronta para existir.

-Isso é insano. Eu vou chamar um médico.

-Médico?

-É. Você não está bem.

-Eu terminei. Não se preocupa.
            
Ele sorriu. Por um tempo longo demais. Ele acordou no dia seguinte e saiu de casa. Com o pouco dinheiro que lhe restava, imprimiu cada uma das suas páginas. Deixou cópias em cada banco de cada ponto de ônibus da cidade. Passou dias inteiros sem dormir, ou voltar para o seu apartamento. Sorrindo o tempo todo.
            
A médica começou a esticar seu corpo, e perguntou por que ele mantinha o sorriso.

-Olha, doutora, é porque a parte ruim passou.

-Mas tudo pode mudar de novo.

-Você não entendeu direito o que eu estou dizendo.

-A parte ruim passou.

-Yep.

-Mesmo assim você se auto aniquilou?

-Yep. Yep. Yep. Yep. Yep.
            
A pequena criança se estende lentamente sobre seus braços. Tem uma mulher muito corajosa, começa a tossir. Disse-me uma coisa interessante. Vida nova representa um mundo de possibilidades infinitas, e essa era a única coisa que poderia ser chamada de humana; a completa e total invencível contingencia de possibilidades voadoras de céus inimagináveis. Um dia você quer ter filhos? Continuar com o ciclo repetido das mesmas e problemáticas ilusões? É lógico. Quem vocês pensam que eu sou? Todo homem tem que se agarrar a um problema, e dormir com ele. Sonhar com essa pergunta, torna-la sua. Consumir-se com uma dúvida. Ou destruir-se na própria dúvida.
            
Existe uma ideia que contaminou toda simbologia romântica clichê. O amor cura seu passado e todos seus ressentimentos. O problema está mal colocado. Nunca se teve algo para se curar para começo de conversa. Não somos pedaços quebrados prestes a se encontrar numa comunhão perfeita de interesses.

Foi o sonho de união que contaminou todo o século XIX. A concepção que poderíamos chegar a um lugar comum, desde que pudéssemos pensar da exata mesma forma. Sonhos são feitos para serem destruídos, mesmo que, ás vezes sejam feitos para renascerem sobre signos novos. O fantasma que nos persegue há muito tempo é a memória de um passado destruído pelo presente nosso. Duas pessoas dando as mãos e afirmando seu tempo frente ao universo. No entanto, a solidão a dois sempre foi uma piada. Não poderia ser nada além disso. 

O escritor silencia-se frente a sua mulher, e perguntam como ele pode ser um ateu, comunista, com 83 anos e não temer sua própria sombra:

-Bem, posso dizer ao senhor Dalai Lama que me chamou para um congresso simbólico. Eu vou desde que ele aceite que com essa idade não vou passar a acreditar em Deus. Quando tinha oito anos fui para Igreja, e disse não. Sai andando pela porta, e nunca mais voltei. Se o senhor Dalai Lama, aceitar-me como o comunista ateu que sou, quem teria mais prazer numa comissão simbólica?
            
Estou um pouco cansado da reflexividade por cima de outra camada de simbologias perdidas, podemos voltar ao começo? Terminar um conto como ele deveria ter começado.
            
Escreveu-se a muito tempo atrás que os seres humanos teriam a capacidade de pensar. Sobre essa lei, redigiu-se, silenciosamente, o contra-argumento que eles poderiam se calar ou se enganar.

A memória nasceu dessas primeiras frases que ditavam que seríamos capazes de lembrar, mesmo esquecendo. Errar, mesmo querendo acertar. Respirar, mesmo morrendo sem nenhum oxigênio. Religando as sinapses do meu cérebro passo a entender que somente escrevo como forma de me lembrar dos rostos que passaram pelos meus glóbulos oculares.

A existência é um olhar pra fora, esperando relembrar por dentro. Daquilo que um dia pode ter acontecido, ou ter sido imaginado. Talvez, sejam a mesma coisa. Acontecer e imaginar são sinônimos mal compreendidos desde o começo da escrita. Por isso Platão tinha tanto medo dos poetas, pois eles poderiam faltar com a verdade. Poderiam deturpar o arquétipos. Marx, da mesma forma, quis chamar os gregos de crianças, pois os gregos não eram modernos. Pois, Marx, Você não é contemporâneo. O próximo que vir ira documentar essas páginas como remanescentes de uma forma de expressão ignóbil. Não vai conseguir conceber que imaginar e acontecer, esquecer e lembrar, viver e morrer são só palavras inúteis. Dicotomias que nunca existiram. Mundos imaginários que nunca sequer pararam de sangrar realidade.
           

            

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