Folha em branco.


            
O homem sentou-se à mesa do advogando esperando os papéis assinados do divórcio. Lentamente, começou a elaborar os últimos anos da sua vida desejando que tudo pudesse ser reescrito. Ele não entendeu quando aquilo aconteceu: a pessoa com quem ele convivia todos os dias não sabia nem ao menos seu estado mental. Ela não sabia que fazia anos que sua mente não era à mesma, ele não sabia mais organizar os lampejos de sanidade que lhe eram dados. Sorria entendendo que não haveria volta, mas mesmo assim se colocou a escrever um papel impossível.
            
Quis primeiro criar um papel branco em que houvesse um começo e um fim. Sem nenhuma incoerência ou falha lógica; círculos perfeitos de beleza. Uma harmonia tão grande de forma que se decompõe em risos de crianças alegres no parque. Uma frase tão simples que poderia deixar bobo o mais experiente dos poetas. Sabia de cor todos os pontos finais que havia colocado na sua vida: ele foi o mestre da lógica e ninguém nunca viu seu plano até o final: um lugar tão vazio que o mais leve ruído não pudesse entrar. Era obcecado pela circularidade dos argumentos, ele tinha o hábito de colocar todos os atos históricos em recorrência eterna. A primeira vez, o mundo é tragédia. De uma segunda, o mundo é somente farsa. Ele queria fazer todos entenderem uma farsa subliminar no espírito inexistente que une a nós todos. Ele preparou o papel em branco e fez riscos tão bruscos que eles poderiam ter uma lógica acima do material. Quis explicar para a sua mulher que ele havia começado tudo do zero. Um ponto em que eles pudessem dar as mãos e não ter nunca mais que discutir. Quis retirar o acaso de cada ato humano; criar um espírito acima de todo e qualquer evento. Ele sonhava com uma história em que ele fosse herói, ladrão e personagem secundário.
           
Olhou para o lugar em que estava sentado. Seu advogado perguntou se ele estava bem. Tossiu sangue por um instante, e disse que tudo haveria de ficar bem. Tinha escrito por horas com uma caneta sem tinta sobre a singela folha de papel colocada a sua frente. Teve um vislumbre de decisão. A partir de hoje, decreto que não existem mais pontos finais. A partir desse momento, a história não tem começo nem fim. Não posso me declarar rei de um feudo sem amor. Não posso me declarar rei de um lugar solitário em que eu faça todas as regras. Os argumentos mais perfeitos são aqueles que podem ser contestados e seguidos; são as formulas de bolo daqueles que desejam seguir a onda do tempo. Estou aqui segurando a ampulheta de um tempo que espera que um dia nos encontremos.
            
A mulher diz que ainda o ama, mas não podem ficar casados. Ele sorri enquanto tenta explicar para ela que ali não havia um começo, nem ao menos um fim, mas somente uma farsa. Se ela ao menos o escutasse, saberia que ele estava certo. Sorriria. Eles sairiam dali de mãos dadas. O sangue do seu estomago pararia de consumi-lo, os advogados seriam desnecessários e haveriam de cantar para sempre os feitos do homem que matou a história. No entanto, ele assinou o papel, saiu daquele lugar, e soube que os fins existem e são reais. São capazes da morte e vida. A cada ser humano que encontramos temos em nossas mãos uma folha de papel em branco com uma história a ser escrita, e tal história merece tanto um começo quanto um fim. Logo, por favor, peço que aqui olhando para o seu rosto, você saiba que eu quero um bom começo, um caminho digno de contos antigos e um final digno de menção. Se não tiver nenhuma diferença entre os tempos, passado, presente, futuro, espero que seja o fato que todos sejam circulares. Todos gritem por liberdade. Ele assina o papel, e sai andando com uma obstinação séria. Espera que seus pensamentos tenham sido claros o suficiente para ela entender. 

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