Charles Bukowski.
Quando Bukowski teve que escolher o
que estaria escrito em sua lápide, teve que tirar um longo momento do seu dia.
Quando digo essas palavras, espero que vocês tenham em mente a vida errante que
ele teve. O álcool e as drogas, dormir em praças públicas e seu amor pelos
encontros inesperados. Ele morria de medo de multidões, queria que o deixassem
em paz. Preferia a companhia de uma bebida e sua própria solidão, mordendo suas
beiradas em noites sem fim. Sem ilusões sobre quem ele era, ou o que haveria
depois. Foi isso que ele pensou que deveria estar escrito na sua lapide.
Escreveu, lentamente, não tente. Não tente. Não tente. Não tente. Duas palavras
para resumir uma vida inteira, e consigo ver o copo de uísque sendo erguido com
um sorriso torto. Um riso irônico frente sua insuficiência; sua fraqueza. Sua
infindável vontade que o deixassem sozinho num mundo em que as regras lhe
pareciam intoleráveis.
Um terno preto, e uma camiseta
social azul. Ele estava sentado na casa do grande poeta. Seus olhos na parede e
nos quadros de Pop arte. Eram as pinturas favoritas da amante do poeta. A guia turística
dizia levianamente que o grande poeta havia morado com a sua amante. Seus
sonetos haviam sido escritos para uma mulher que passou o resto dos seus dias
com ele; sem idealismos, por favor, ela era minha amante. E daí, gritava seu
padrão moral próprio, se eu escolhi viver na casa longe da minha tradicional
esposa. Abandonei minha mulher, e vivi com a cabeluda. Para de me chamar desse
jeito, cabeluda. Que apelido absurdo. Ele escreve esse dialogo imaginário,
enquanto ela olha seus vulgares rabiscos numa folha de papel improvisada. Ele
se aproxima da sua mesa e sorri. Diz que seria possível imaginar um dialogo entre
o poeta e sua amante. Ela diz que ele é engraçado. Repete a frase com um
sorriso.
Momentos depois, eles estavam se
beijando na praça no centro da cidade. É quase meia-noite, a praça parece
vazia. Alguns traficantes vendem drogas do outro lado. Ela sorri, enquanto tira
metodicamente parte da sua roupa. Ela diz que ele não age como um intelectual. O
que um intelectual deveria fazer em tal condição. Não sei. Acho que você
deveria falar mais. Não gosto de falar. As palavras me parecem completamente inúteis
nesse instante. Depois e antes podemos ganhar contornos de frases, mas, nesse
momento, não quero voltar ao mundo das palavras. Elas querem dar significado e
sentido. Não quero mais isso. Ela sorri. Isso seria como um intelectual faria.
Não. Não gosto de palavras complicadas. Enquanto gemidos se espalham por um
banco de madeira na beira de uma pequena lagoa, seus olhos se desviam
sistematicamente.
O grande poeta queria morar no mar.
Era grande e gordo, mas mesmo assim fez uma casa minúscula. Desde que ela
pudesse parecer com um barco, o poeta não se importava. Gostaria de estar preso
num navio, longe desse mundo danado, com a cabeluda. Pensando que o significado
do ressoar do mar estava na própria história da humanidade. Por isso, escute
com cuidado, o dique de onde posso ver tudo que acontece. A polícia da ditadura
está invadindo o apartamento. Derramem a água, por favor. Inundem minha casa,
eu já construí um barco, e nele vocês não estão convidados. Só eu e meu amor.
Meu pedaço de madeira decomposto em milhões de fragmentos em forma de
escotilhas para vermos tudo acontecendo. Espere comigo um momento. O homem e a
mulher no banco da praça chegam ao ponto máximo do seu encontro.
Ela dá seu telefone e seu e-mail.
Diz para ele ligar. Não se importa com a distância. Por favor. Ele sorri. É um
sorriso cansado e desnecessário. O telefone foge das suas mãos no momento que é
entregue, e vai ser levado pelo vento. O homem tenta explicar para si mesmo que
não pode mais. Não consegue ir até onde ela pede. Sua incapacidade está fixada
na desconfiança.
Seu
amigo chorava no bar, repetindo frases ignóbeis: sabe, amigo, um buraco, essa
porra de buraco que colocaram no meu peito, eu pedi uma coisa, somente uma
coisa, e ela foi embora, em meses inteiros, nunca pedi nem uma ligação, um
encontro, e, agora, ela me tem a coragem de me negar uma ajuda quando estou
quase morto, não consigo confiar mais, o abandono nesse instante, o que ela
querem, que eu volte a ser bom, não, não ligo se me chamem de um babaca, serei
aquilo que não querem que eu seja, o sangue aqui desmanchado sou eu escolhendo
a outra coisa, estou na busca pela eterna mulher, em qualquer lugar, não quero
acho um particular, quero a generalidade de tudo. O homem no terno queria que
ela escutasse seu amigo, então ela poderia entender porque havia abdicado do
seu desejo de tê-la de novo. Um perdão. Estou afundando no barco, ele diria.
Não posso te encontrar de novo. Foi o vento que levou seu nome e telefone.
Outra
mulher senta na sua frente. Como ela era bonita, ele pensa. Tão bonita como uma
fotografia. O homem de terno funcionava de forma especifica: existe um número
limitado de mulheres por quem vou me apaixonar, e eu sei quando vejo uma,
converso e sinto seu toque. Ele sabia que estava fadado nos primeiros minutos
de conversa. Se com trinta anos de idade, aquele sentimento só havia se
repetido duas vezes, ele sabia que era essencial agir. Ela disse as palavras
mágicas, eu detesto jogos. A mulher com longos cabelos ruivos e vestido presto
disse ensimesmada tais palavras. O homem de terno respirou fundo como se
estivesse prestes a exalar todos os sentimentos no seu coração.
Palavras
sinceras. Tudo bem. Ele vai até o banheiro e começa a escrever em guardanapos a
seguinte mensagem:
Você
me pede palavras sinceras. Tudo bem. Sei que mal nos conhecemos, mas não
consigo parar de pensar no encontro com você o dia inteiro. Existem três opções
para um homem que não aceita os padrões sociais de amor. O primeiro deles é
resignar-se e agir segundo os ditames. O segundo é rejeitar tais processos
cansativos e se isolar o máximo possível da sociedade. Finalmente, ele pode
criar novos padrões.
Era
isso que eu desejava com você. Sinceramente, era tudo que eu queria. Criar um
mundo em que pudéssemos criar nossas próprias regras. Em que eu pudesse ressoar
minha calma e meu mundo particular com você. Uma solidão a dois. Um barco em
que pudéssemos ver as realidades alternativas passando, e rindo da
impossibilidade de ficarmos juntos. No entanto, nós poderíamos rir porque o
pior já havia passado.
Os jogos ridículos que temos que passar para chegar até
onde posso ficar com você. Então fico cansado, e não sei mais o que te dizer.
Escrevo nesses guardanapos e vejo minhas mãos se movimentando
descontroladamente. Logo eu que nunca tive indecisão, e fui tomado como bobo
pelas minhas ações impensadas. Estou aqui escrevendo com sinceridade em
guardanapos de papel.
O homem de terno contava essa
história algumas vezes para seus amigos até eles perguntarem pelo final. Seu
sorriso caía do rosto, e descrevia um final inesperado. Caros amigos, devo
dizer que como toda ilusão, os castelos de cartas se desmancham.
Ela
leu aquilo com olhos desconfiados, e não entendeu o procedimento. O beijo se
desencaminhou, e ela passou dias procrastinando a próxima saída. Sabendo do
tempo do mundo, ele se sentou calmamente e descreveu que não adiantava
insistir. Cada homem deveria ter sua própria ilha, e saber habitá-la. Viver
dentro da sua cabeça, e sorrir. Alguém disse que era maturidade, a forma com
que ele olhava os movimentos do mundo. Ele disse que era o mínimo que se
poderia esperar dele: uma calma irreal frente ao totalmente aleatório. O que
ele não contou foi que quando chegou a casa, ele começou a se perguntar se não
seria melhor o andar dos acontecimentos, porque afinal gostar de alguém era
mais do que arriscado. Era insensato. Dispensou esse pensamento com displicência
e retomou seu caminho. Sabendo que aquela sensação confusa de abandono e amor
era natural. Conseguiu soltar um sorriso triste antes de cair na sua imensa
cama pensando que a amava de verdade, mesmo que tais palavras nunca fossem
exprimidas.
Bukowski.
Ninguém entendeu direito aquele homem. Acharam que era um misógino. Posso dizer
ao contrário. Ele amava profundamente as mulheres. Se ele precisava dizer tanto
de sexo é porque o mundo se move segundo alguns movimentos. Quando ninguém
acreditava nele, uma jovem editora disse que ele era um gênio. Disse também que
era feia e ninguém nunca casaria com ela. Bukowski sorriu e disse que casaria.
Os dois se casaram, e viveram felizes para sempre. Ou até o divórcio dias
depois.
O
homem parecia deslocado na festa. Seu terno estava amassado, e o álcool parecia
escorrer nos seus olhos. A menina começou a beijá-lo. Eles tinham uma história.
Momento depois, ele saiu andando. Ela começou a conversar, tentando fazer
sentido do comportamento incoerente:
-Onde
você está indo?
-Para
longe.
-Porque?
-Você.
-O
que diabos eu fiz?
-Você
é famosa por encontrar alguém e destruir a sua vida. Entrar na mente; criar jogos. De repente, sumir. Deixando um vazio que parece um buraco sufocante. Você cria uma história sobre o amor, e contaria o mesmo refrão para qualquer um. Quando se enjoa, acaba sumindo. Criando outra história.
Sem ligar os rastros de sangue deixados pelo chão.
-Você
é maluco.
-Pensa
bem. Qual ex-namorado seu ficou bem depois do término? Você consome os espíritos
até não restar mais nada.
-Eu
não sou assim, você não se lembra dos bons momentos?
-Lógico
que lembro. Assim como lembro que antes de morrerem nos penhascos do mar, os
homens adoravam os cantos das sereias.
-Você
não faz sentido. Eu te amo.
-Para
quantas pessoas e quantas vezes você já disse isso?
-Isso
não diminuiu o que estou falando.
-Tudo
repetido ao absurdo não faz mais sentido.
-Porque
tanto ódio?
O homem não sabia mais o que
repetir. Queria explicar para ela que era um mal de geração, mas que ele não
era mais capaz de lidar com tais problemas. Ele não queria vidas destruídas e
narrativas incoerentes. Ele queria a calma de um longo domingo na praia. Queria
saber que seus medos seriam extintos pelo cotidiano. Um nome assustador e mortífero
para qualquer romance emocionante, mas ele já não queria que sua vida fosse uma
obra literária. Queria um final entediante, sem mortes ou mordomos assassinos.
Ele imaginou que se não podia mais
acreditar no amor, faria o movimento contrário. Se o homem que cria a história
pensa que acordou de um sonho. Mesmo não tendo nenhum amor, ele escreve e vive
como se tivesse algum para lhe dar significado. É uma farsa nobre criar uma
narrativa de amor ideal. Uma piada de um riso irônico imaginar a vida como se
ela fosse o melhor de nós todos. Assim, lidar com as pessoas como se suas
narrativas pudessem lhe fazer sentido. Sua ficção haveria de ser bela, ele
pensou. A mulher da casa do grande poeta, a mulher que lhe abandonou com o
guardanapo nas mãos e a mulher que gritou na boate seriam um ruído todo retorcido de
sonhos irrealizáveis. Era finalmente capaz de escrever sua cartografia.
Bukowski então viria a ser um dos seus
mais novos amigos. O homem que amou as mulheres com tanta intensidade que teve
que passar o resto dos seus dias em total solidão. O homem que levou tão a
sério o argumento que devemos crias mapas próprios que desistiu dos mapas
alheios. Sabia que não haveria salvação na figura romântica, mas mesmo assim
impôs sua sensibilidade ao papel. Sonhando que houvesse uma esperança de
redenção. Não tente, ele riria ao repetir tais palavras. Escreva na minha
lapide, inscreva na sua pele, e viva como se tudo fosse possível, mesmo sabendo
de todas as impossibilidades. Era esse o código por qual ele haveria de viver.
Tirando seu terno e colocando na cadeira, escutando a música sobre um amor que nunca
vai acontecer e tendo fé que isso já não fazia qualquer diferença.
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