Nascimento.
Um
homem sábio dizia em plena praça pública que nossas vidas são narrativas. São o
que temos que repetir, incessantemente, para demonstrar quem somos. Alguém
repete a mesma história: no dia que eu nasci, alguém me disse que fechei os
olhos profundamente, as enfermeiras não entenderam porque a criança não abria
os olhos, não conseguia ainda articular suas palavras para tamanha
incompreensão, choro devagar e lento, sanado pelas mãos cuidadosas de
enfermeiras. A criança demorou horas para, finalmente, abrir os olhos. Seus
cílios se movendo devagar contra a luz inconcebível daquele berçário, suas
primeiras palavras de ajuda frente ao mundo incompreensivo. Se ao menos, fosse
capaz de articular uma narrativa naquele momento. Talvez pudesse ter se
explicado antes que fosse tarde demais.
Os
homens contam sua vida a partir das palavras colocadas em uma bela seqüência
lógica. Ordenam seus posicionamentos como um mapa de geografia. Um louco foi
encontrado em plena Paris construindo marcas em toda a cidade; sua forma de
construir placas e sinais do seu mapa imaginário. Não poderia ser culpado por
construir sua própria cidade; seu mapa. Quando olho para trás, imagino que meu
mapa teve que ser reescrito tantas vezes que não concebo porque ainda mantenho
essa fala. A razão do meu mapa ainda se inscrever em clichês não superados.
Como o louco que rabisca no metrô, buscando criar coerência em túneis sombrios
e entrelaçados.
A
narrativa do homem solitário. O ser-vivo que em toda sua capacidade deseja
negar aquilo que se repete a todo o momento. O grito de autenticidade num caos
de marasmo. Ou seria um caos de solidão num rio de criatividade invisível. A
distinção parece ilusória.
O
homem sentado na praça não conseguia parar de organizar seus pensamentos a
partir da narrativa. Quis criar uma história em que o resultado ficasse
completamente indeciso e, para isso, seria capaz de levar as últimas
conseqüências sua maturidade recém-conquistada.
Se
a mulher sorria, invariavelmente, não parece tão evidente sua resolução.
Imaginou por um momento que se desculparia pela juventude no seu sangue e a
beijaria em pleno beco sem saída. Se o sorriso aberto se convertesse em
momentânea aceitação, ele teria algo a dizer sobre sua narrativa. No entanto,
por um momento, sua hesitação lhe tirou o melhor. Não queria repetir mais o
mesmo que havia visto milhões de vezes em suas intuições. Naquele
micro-segundo, seu raciocínio fora simples e conciso. Porém, eu custaria a
dizer que tinha sido correto.
Dois
amigos voltam do mesmo cinema juntos, mas ela está no ônibus errado. Ele ri
convalescido do erro infantil. Grita, um segundo antes da porta fechar, que ela
está no local errado. Enquanto seu vestido corre contra o ar na direção da
porta aberta do veículo. Ele solta um sorriso plácido de resolução. Se havia
algo que lhe deixava calmo no seu espírito era a figura de uma bela mulher
correndo com seu vestido com um riso de confusão no rosto. Se ao menos pudesse
colocar tal sentimento em palavras, ele seria capaz de explicar seu sentimento
com o mundo. Seus olhos poderiam abrir um pouco mais, e as enfermeiras poderiam
não se preocupar. Não seriam horas contadas do menino que não abriu os olhos. O
sol não seria o vilão de uma história de filme de qualidade duvidosa.
Infelizmente,
a história da autenticidade não pode ser a mesma do que o nascimento do sol. O
homem sentado na mesa parece sozinho com seus próprios pensamentos. Lembra da
narrativa sobre o homem que não poderia pensar demais, e sorri pelas notas
escoarem pelo seu ouvido com intensidade. Repete, em silêncio, que seu
pensamento é uma forma de oração a força que lhe impele para frente; sua
própria forma de deus pessoal. Sua figura está inscrita no momento em que o
homem consegue, de novo, sorrir com uma confusão de uma mulher que nunca lhe
beijou; do vestido absurdo levantado contra a vontade pelo ar num ônibus
vagabundo. Foi à simplicidade do momento, e não seu romantismo que o levaram a
pensar. Mesmo que nunca tivessem se conhecido, a figura haveria de dar um ar de
respiro numa noite escandalosamente silenciosa. Seus olhos abertos contra o
espelho de si mesmo. Em um estúpido sorriso solitário de encontro consigo
mesmo. Se ele pudesse dizer tais palavras, talvez a criança no berçário pudesse
ter aberto seus olhos.
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