Dedicação sincera.


Corre você. Eu tenho direito de escrever uma página sobre você. Contar sobre os seus detalhes. Lembro bem como começamos a nos falar. A falta de identificação completa com a realidade. Seu sorriso torto. O jeito desajeitado de vir falar comigo. Aparecer onde eu não esperava. Vir escutar meus problemas. Entendo, completamente, a necessidade de se abrir. Mal eu sabia que poderia ser qualquer outro. O entendimento de um tolo que viu uma abertura como uma salvação; um homem que frente a um abismo de sensações, escolhe agarrar sua mão. Delicadamente, dizer que preciso de alguém por aqui. Escutar os ecos de uma guitarra sem som, suas palavras ecoando pelos silêncios do meu quarto. Lentamente, eu digo que sinto sua falta. As partes se recompondo em um todo desmembrado de ilusões.
            
Contam-me uma história. Um homem anda até seu destino final. O percurso começa a lhe matar, seus pedaços são retirados aos poucos, a cada porta é obrigado a dizer qual é seu nome. No entanto, ele já não sabe quem é. Repete o clichê que lhe pedem. Uma por uma, suas abstrações tomam conta da sua mente: se ao menos, eu pudesse olhar nos seus contornos, talvez eu tivesse a chance de lhe abraçar mais uma vez.

Antes de lhe dizerem a má idéia que era dizer que gostava de mim. Um minuto no retrocesso do tempo enquanto as notas ressoavam na sua voz. A porta sendo fechada pelas minhas mãos descrevendo uma linha sincrônica sobre nossa história. A coragem de um bater desencorajado pelas ilusões. Eu, já sabia, seriam as palavras que, agora, seriam retratadas em nossos semblantes.
            
Eu olho para o mesmo lugar em que esperava a batida na porta ecoar pela madeira até meus ouvidos. Espero, atentamente, pelas palavras que você vem me dizer. Os sintomas de uma doença contemporânea de solidão que já não encontra cura. Sei que meus delírios me custam uma vida feliz, mas se ao menos fosse permitido continuar com eles; sei que seria capaz de relevar todos os sintomas irrealizáveis do nosso amor. Seria capaz de ir até o fundo dos confins da contemplação imperfeita. Dizer ao monge budista que já não havia razão para visualizar a paz; ela seria a reza, silenciosa, dos nossos dizeres.
            
Entendo que não existe alguém sobre qual estou escrevendo. Não existe alguém lendo essas palavras. Se todo autor sabia disso, ele continuou escrever. Se um pobre filósofo se manteve escrevendo, mesmo quando encenava seu suicídio em meio do dormitório coletivo. Ele sabia que seria escutado. Em algum futuro distante, suas palavras ressonariam na mais tola mente. Suas concepções inundariam cabeças banhadas pela beleza da liberdade. Seria capaz de recompor sua vida, pedir ressurreição a um deus que nunca acreditou, e retomar toda sua vida em uma visão. No entanto, sabe-se que não somos esse homem. Sabemos que nossas linhas de dirigem a um tudo desigual de públicos que não existem.
            
Drummond me dizia, discretamente, que eu seria o silêncio não escutado no teatro. O nada que sai da minha boca nunca desejou ser mais que isso. Se em algum momento pretendeu ir além do som atravessando a garganta foi à mera possibilidade de outro escutar. O andar estrambótico de uma rua vazia em que seus passos se repetem em ordens organizadas.  O céu começou a lhe dizer que uma flor estava prestes a nascer, apesar do despeito do som dos carros. O silêncio que deixei dito no seu teatro, agora faz palco numa rua vazia. A flor desembrulha em pétalas de sangue em meus braços. Sei que o que digo parece um samba antigo. Homens ao redor de uma mesa de bar, sorrindo a doces dores findáveis.
            
O andar silencioso na minha rua diz que poderia ser você virando a esquina. Não viro mais a cabeça tentando saber se isso seria possível. Torno o meu dorso ao céu, esperando por uma mensagem de um caminho sobre o qual eu não andei. Pergunto-me se já sabiam disso, quando me contaram na infância que eu deveria colocar os pés no chão para poder respirar.
            
Comecei dizendo que sinto falta do seu contorno, mas isso é falso. Assim como a limitação de uma página. Sigo dizendo que seu contorno existe em mim como o mais puro ressentimento de um bruto pagão. A explicação para isso seria um simples acorde de um violão sem travas, em que eu pudesse, finalmente, representar uma imagem coerente de um todo que já não me aparece como existente.
            
Respiro um ar de um peito que não transgride seus limites, mas se mantém em puro êxtase de um mundo inacabado. O meu ressentimento cria algo novo que não pode voltar a mim. Ele cria um mundo, próprio, em que somos figuras de uma história feliz. Sabendo que o final pode não vir a acontecer. Um livro sobre uma história que começa no final, piora no meio da vida, e que no seu começo diz sua impossibilidade. Retrocedo a nossa história a um principio que nunca existiu. Agora posso em paz lhe dedicar essas pobres linhas, sabendo que já não me resta tanto tempo para escrevê-las. 

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