O duplo.
O
menino sorria enfaticamente para qualquer um do bar olhar. Era um sorriso
total, e irreconhecível num rosto que somente sabia sofrer. Irascível era seu
querer. O gosto na boca de alguém que ele realmente gostava. Seus sonhos
realizados em poucos momentos. Seu espelho de felicidade frente a um amigo. Os
mil sorrisos retidos no segredo. Era sua falha ficar tão alegre. Enquanto
sorria, percebeu que tocava sua banda favorita. O silêncio dos acordes iniciais
assustava tamanha felicidade: uma música tão incomum num bar de esportes. Tudo parecia ficar disparatado, quebrado e
espelhado. Sua realidade parece se fundir em universos alternativos. Seu amigo
começou lentamente a desaparecer.
Um homem sentou, lentamente, do seu
lado. Seu terno era preto. Tinha uma longa barba e era careca. Seu sotaque
parecia ser do leste europeu. Seus modos eram grosseiros, e sua voz era grossa
e melódica:
-Você
nunca mais ver ela.
-Isso
não é possível.
-Eu
estou te avisando, porque a próxima vez que nos veremos será sua morte.
-Isso
não foi muito gentil. Você é o diabo?
-Não.
-O
que você é?
-Provavelmente
sou seu único amigo de verdade.
-Isso
não é verdade.
-É
o que eu estou te dizendo. Você vai perder tudo que sonhou. Vai se
descontrolar. Não saber para onde virar. Ficara desesperado. Terá dificuldade
de sair da cama.
-E
daí?
-O
problema é que uma parte sua vai ficar perdida.
-Perdida?
-Num
lugar longe daqui.
-Isso
não parece real.
-É
mais real que o gosto de uísque na sua boca.
A melodia entrou, e os acordes se
deslocaram tristemente. O menino percebeu seu amigo ao seu lado. O tempo havia
parado por alguns instantes. Ninguém parecia ter notado.
Dias depois, ela disse que nunca
mais o veria. O tom da indiferença o fez perceber algumas coisas: o homem
estava certo. Nunca se sentiu tão sozinho e desolado. Percebeu que naquele
momento havia somente a si mesmo para recorrer. Sentado na sua casa. Tendo
pensamentos suicidas. O problema era que ele sabia o que vinha depois: a
autodestruição. O consumo de todas suas inábeis sensações em farmacêuticos.
Ilegais e legais. Sorrisos deslocados em boates ruins. Sexo terapêutico com
estranhas. O consumo de si mesmo aliado a destruição do seu corpo.
Desequilíbrio.
O médico vai até a cama do hospital
e começa a dizer que, lamentavelmente, ele não conseguia explicar o coma. Não
havia razão médica para aquilo. As drogas tinham sido filtradas há muito tempo,
mas seu estado permanecia grave. Era como se o paciente quisesse morrer.
Lentamente desistia das suas pulsações e do sangue circulando. Havia história
de casais que passaram muito tempo juntos que quando um morria, dias depois, o
outro fazia o mesmo. Ele, sozinho, percebeu que era sua sina incompleta de um
par. Uma ridícula valsa sem par.
O médico conversava com o paciente,
quando escutou vozes ecoando na sua cabeça:
-Era
o que ela representava.
-O
que?-Disse o médico.
-Ela
representava o mínimo de fé. A alegria é somente a fé, doutor. Alguém que quer
te conhecer de verdade. Após disso, te abandona. Abala a fé de um homem no
mundo. Com a morte da fé, não há felicidade. Não importa mais. Quando o mínimo
vira nada, a vida fica complicada.
-Você
é o paciente em coma?
-Eu
sou você mesmo amanhã.
-Isso
não faz sentido.
-As
coisas raramente fazem.
-Você
não vai acordar?
-Não.
-O
que faço?
-Desligue
os aparelhos. Ninguém vai saber.
-Eu
vou.
-Desligar
os aparelhos?
-Saber?
-Eu
te pedi. Você não tem culpa.
Nesse momento, o doutor entrou em
crise. Desligou os aparelhos que mantinham o menino vivo. Não se sentiu
culpado. Respirou fundo, enquanto as batidas do coração se desaceleravam
lentamente.
O homem de terno preto apareceu na
sua frente. Uma mesa de madeira com duas cadeiras se deslocava num fundo
completamente branco e vazio. O sorriso do homem era imenso, e o garoto parecia
desgostoso com a situação.
-Eu
te disse que te esperaria no dia da sua morte.
-Você
de novo?
-Eu
sou responsável pelo seu ontem.
-Meu
ontem acabou como você pode ver. O médico desligou os aparelhos.
-Você
desligou os aparelhos.
-Eu
sei.
-Para
voltar, você tem que deixa parte de si mesmo aqui.
-Como
assim? Eu não quero voltar.
-Você
vai voltar. Para isso, somente uma parte sua pode partir. Um simulacro daquilo
que você foi um dia. Você dorme, come, conversa e vive nos mínimos parâmetros
de vida. Você respira. Sua originalidade e personalidade são consumidas aqui;
destruídas. A única punição pelo seu pensar é você voltar por partes. Cada
decomposição da sua alma sendo repartida em pedaços mínimos de vida.
-Ninguém
vai notar a diferença?
-Ninguém.
-Como
você sabe?
-Você
já teve sua lição. Ninguém nota o que acontece com alguém que cria um
personagem. As mascaras sobem, e você sabe que nada vai mudar. Idílios
ridículos foram seus sonhos; construções retorcidas de amores que nunca
passaram a existir realmente.
-Tudo
bem. Eu não quero voltar.
-Resposta
errada, garoto.
-O
que?
-Nós
mandamos os simulacros de volta de quem não quer voltar.
-Eu
fico aqui, preso no purgatório?
-Aqui
não é o purgatório. Era a antiga sala das Greias. As mulheres que teciam os
destinos do mundo; escolhendo quem morria e quem vivia. Você escolheu morrer.
Eu escolhi que você viveria.
-Isso não é possível.
-Tudo bem, nós
modernizamos o local. Agora arrancamos olhos como trabalho.
-Você vai arrancar meus
olhos ?
-Olhe-se no espelho.
Ele olhou-se detalhadamente, e percebeu que não tinha
olhos. No entanto, ainda conseguia enxergar. Ficou assustado, e quis gritar:
-O que eu fiz para
merecer isso ?
-Você deu seu nome
verdadeiro para alguém.
-Meu nome verdadeiro? Isso é um mito idiota.
-Não é um mito idiota.
-Como isso pode ser possível ?
-Você
disse um nome qualquer, mas o que importava foi à intenção. Você recobrou por
trás da palavra todas as ramificações estúpidas da sua personalidade. Seu eu
retalhado em mil pedaços numa singela intenção: seus planos, sonhos, imagens
bestas e resumos sucintos de vidas imaginárias dadas de graça. Você foi idiota
o suficiente de dar seu nome verdadeiro a alguém que seria capaz de ignorá-lo.
Os nomes verdadeiros têm vida, e quando são esquecidos causam morte.
-Eu dei meu nome
verdadeiro.
-Eu sabia que você
seria razoável garoto.
-E agora ?
-Agora, seu simulacro
volta. Você fica preso aqui.
-Até quando ?
-Para sempre.
-Não tem outra opção
menos apocalíptica ?
-Não.
-Eu posso pelo menos
saber o que vai acontecer com a parte que fica ?
-Você não vai saber.
-O que ?
-Você
vai ser invadido por uma calma irreal, sem saber reconhecer quem você era. Terá
que se ocupar com outras pessoas parecidas com você. Obrigarão você a recontar
sua história milhões de vezes. As imagens, esparsas, passando pela sua mente.
Uma tela de recomposições dos seus sonhos perdidos. As acusações daquilo que
você poderia ter feito.
-Fizeram isso com você ?
-Foi.
-E agora ?
-Agora você fica, e eu
vou embora.
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