Tatuagem.
-O
que te assusta tanto?
-O
esquecimento.
-Para
com essa frescura.
-Olha.
-O
que?
-Se
a pessoa que eu mais gostei, e que achava que mais conhecia é um total mistério
para mim. Se mesmo essa pessoa, eu nunca mais vou ver. Escutar. Falar.
-E
daí?
-Então
qual a garantia que eu tenho sobre qualquer coisa?
-Você
não tem.
-Muito
animador.
-Digo.
Você tem certeza de muitas coisas. Primeiro, outras pessoas existem. Não
importa o quanto sado-masoquista você seja. Outras pessoas legais existem no
mundo.
-Existem,
mas o que eu queria dizer é que, bem, não dá para fugir do total
desconhecimento.
-Isso
não faz sentido.
-Lógico
que faz. Veja bem: se tudo é esquecido, logo porque as coisas têm que ao menos
começar. Uma boa razão.
-Felicidade.
Ele riu alto.
-Para
de rir. Eu to falando sério.
-O
que diabos significa essa palavra?
-Significa
você menos mal humorado.
-Você
já viu isso acontecendo?
-Já,
duas vezes, acho.
-Quando?
-No
dia em que você soube que não ia morrer. E no dia que você decidiu não morrer.
-Foram
bons dias admito. O primeiro deles, eu recebi resultados de exames bons dizendo
que a doença era menos grave do que previram. No segundo, estava prestes a
morrer. Era só ter ficado parado. Nunca mais existir. Eu decidi levantar da
banheira cheia de sangue, enquanto meu pescoço se desmanchava em cortes. Eu
sobrevivi.
-
E teve o dia que minha banda favorita tocou.
-Três
dias então.
-Realmente.
Parece um numero enorme de dias.
-Enfim,
o que você quer que eu diga?
-Quero
que você diga que a vida não tem significado.
-Não
tem.
-Quero
que diga que tudo não vai dar certo.
-Tudo
não vai dar certo.
-Acabou?
-Acho
que sim. Estou tranqüilo.
-Eu
nem tenho alma.
-Isso
é verdade. Duendes não têm alma. Desculpa. Por isso, eles têm potes de ouro.
Para compensar, a falta de alma.
-Muito
engraçado.
-Digo,
você é feliz.
-Sim,
sou.
-Os
problemas são diferentes, sabe?
-Continuam
sendo problemas.
-Entendo,
mas sabe de uma coisa? Eu adoraria ter novos problemas. Eu tenho os mesmos,
sempre.
-Você
teve duas vezes o mesmo problema.
-É,
tem isso.
-Sabe
o que não acho justo?
-O
que?
-Você
vai passar dias, meses e anos se violentando. Auto-consumindo.Nos piores
sentimentos possíveis, e você não pensa no intervalo.
-Que
intervalo?
-O
maldito intervalo entre suas consecutivas mortes. Digo. Felicidade.
-Quando
eu tive esse?
-Deixa
de ser idiota.
-O
que?
-Você
tem dois defeitos terríveis: ser sensível demais e pensar demais nas coisas.
-Sou
auto-destrutivo também. E tenho belos olhos. Sou o pacote completo.
-Você
não consegue ser sério por um momento.
-Tudo
bem, mas eu não sou sensível.
-Aham.
-Sério.
-Aham.
-Sério.
Eu não deixo ninguém entrar no local que as coisas me afetam. Um lugar
profundamente escondido, trancado e vigiado. Uma maldita prisão em que
sentimentos não existem. O álcool, sim. Sentimentos, não. O plano megalomaníaco
de não sofrer. Fecho essa porta como um santuário. Meu deus mora nesse lugar
interior fechado de tudo, e ele não responde a ninguém.
-E
porque está tão desesperado agora?
-Porque
eu fui infantil.
-Porque
infantil?
-Deixar
as pessoas entrarem no seu santuário mental, você tem problemas? Você pode
ficar, namorar e até mesmo casar com alguém sem nunca permitir a pessoa de
entrar na sua mente. Eu fui infantil. As crianças abrem as portas, sem
perguntar quem está entrando. Elas acreditam na bondade. Eu não. Eu acredito
que Hobbes e todos os céticos lógicos tinham um ponto bem importante em
acreditar que todas as pessoas eram idiotas e egoístas. Infelizmente, sou
humano.
-Infelizmente?
-Ás
vezes, eu sonho que fujo daqui para uma cabana, e viro outra coisa. Um ser sem
sentimento ou emoções. Alguém anestesiado o suficiente para não ter que andar.
Entende?
-Isso
é a coisa mais idiota que já escutei.
-Enfim,
é o que eu penso.
-Isso
é a morte?
-Claro
que não. A morte é um lugar assustador em que ninguém sabe o resultado final. A
morte é a grande pergunta. Sem nenhuma resposta muito boa em vista.
-Então?
-O
que?
-Sem
pensamento sobre a morte.
-Várias
deles. Schopenhauer fala sobre isso. Freud também. Nietzsche. Só gente fina.
-Digo.
-Sim,
eu tenho um revolver escondido. Ele tem uma bala. Você não vai encontrar.
Ninguém vai encontrar. Há dois anos, dei um prazo de dez anos. Eu escolheria.
Somente eu. Sem ninguém para atrapalhar. Só eu e a imensidão me esperando.
-Muito
tempo.
-Está
correndo. Oito anos.
-Você
é insuportável.
-Amigos
servem para isso.
-Acho
que sim.
-Obrigado.
-Porque?
-Você
confirma minha sanidade.
-Eu
faço isso pelas pessoas.
-Ainda
vai se negar a me contar o nome dela.
-Nomes,
nomes e nomes.
-Não
vai me contar o que a tatuagem nas suas costas significa?
-É
uma música. Já te falei.
-E?
-Não
tem nada a ver com ela. É uma inscrição. Nunca nem conversamos sobre essa
música.
-Mas
o que ela significa?
-Significa
que a gente nem sempre enxerga. Ficamos cegos. Esperamos pacientemente.
Destruímos a nós mesmos no silêncio. Finalmente, vemos. Vemos tudo àquilo que
foi ignorado. A luz na filosofia sempre foi a revelação ou um mundo melhor, mas
tem pouco a ver com isso. É sobre finalmente conseguir ver o que não importava.
Cada pedaço da sua vida num retrato transposto sobre o que você precisa. O que
você enxerga. É isso que significa.
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