O suicídio de Seymour Glass.
Uma homenagem ao conto "Um dia perfeito para
peixe-banana":
Não
me peça para ser feliz. Foram as palavras que ficaram incrustadas na sua
garganta. Seja feliz. O conjunto de duas palavras mais detestado de toda língua
portuguesa. A escolha abismal entre um pobre verbo e um adjetivo. O que ele
pensava sentado naquela banheira era fora da minha consideração. O revólver
apontado para a sua cabeça. O silencioso dilacerar dos pingos de água caindo
sobre seu corpo. Seja feliz. Uma variação do nosso famoso: fique bem. Ganhe
felicidade.
Duas pílulas na mão. A primeira te
leva até o buraco do coelho. Até as extensões do seu organismo e consciência.
Leva-te ao lugar de total e completo esquecimento. A segunda anestesia seus
sentimentos, e lhe provém uma falsa felicidade. As duas são fugazes, no entanto
uma é prescrita, a outra é ilegal. O buraco de toda subconsciência circulado
pelas intemperanças da sua destruição. Vamos, disse o gato laranja, cuidado
onde está pisando. Você não sabe até onde pode ir. O homem da banheira sabia os
limites da sua incerteza, mas parece ignorar qualquer aviso de perigo. Se fosse
mera fragilidade, haveria perdoado qualquer engodo. Entretanto, não era sobre
isso. Não especialmente.
O aluno visita seu antigo professor.
Deve a esse professor o amor pela filosofia. Ao mesmo tempo, seu principal
inimigo é o homem deitado naquela cama de hospital perdendo sua sanidade.
Infelizmente, o destino opera como um teatro de máscaras; a admiração e o ódio
convivem entre si harmonicamente. A hipocrisia é uma palavra difícil; quase
fora de uso. Os olhos do professor parecem perder seu brilho. Delírios de um
homem destruído. O homem que criou sua carreira acadêmica pediu somente uma
coisa: arsênico. Os dois sabiam pelas recorrentes tentativas de suicídios de
ambos que aquela brincadeira era comum. Alguma coisa daquela vez era diferente;
foi como se o aluno pudesse pressentir a máscara caindo. O som se acabando. A
carta nas mãos do seu professor tinha aforismos
rascunhados com uma péssima letra:
O tempo é eterno, e somente o
momento cronometrado pelo segundo do relógio. Repetimos todos nossos erros. O
eu escondido volta a atacar e se destruir. A razão faz parte disso. Construí-se
a partir da nossa recorrência de absurdos. O tempo é circular; se repete. Não
pode ser considerado eterno, porque ele não é uma linha. O conhecimento é um
anjo frio, disse certo homem. Com certeza estava certo. Se tudo nos fundo da
nossa mente está obrigado a cometer os mesmos erros, não sei se existe algum
motivo. Qualquer motivo que lhe preste. Para continuar. Anjos frios não
abraçam. Enfiam facas. Jogam pedras de granito. A possibilidade é o absurdo.
Aceitar que continuar não tem que ter uma razão. Ou uma felicidade. Ou um
mantra. Seja feliz. Seja feliz. Seja feliz. Lembrou-se da sua família e amigos repetindo
palavras inúteis. A possibilidade. De qualquer coisa. De qualquer maldito
evento. A vida não deveria ser evitada, porque ela deveria ser aceita. Aceita
como absurdo. Acredito que é ai que reside o motivo para não pegar uma arma com
uma bala e enfiá-la na boca.
Se ao menos naquela tarde, tivesse
acontecido ao contrário. Não tivesse sido o homem que viu, antecipadamente, a
mulher atravessando a praça. Ela teria impedido. Corrido. Socorrido. O destino,
ele acreditou. O desencontro, momentâneo, teria sido uma inscrição de retidão.
Fora o universo que o colocara naquela banheira. O vento batendo forte entre as
cortinas e, por um instante, eles se perderam. Sabia do absurdo desses
pensamentos, mas uma pequena idéia lhe agradava. Toda repetição era o alongamento
do universo. Cada expansão do que haveria e iria acontecer. O desencontro nunca
aconteceu, a não ser na sua mente. Poderiam ter acontecido milhões de vezes. As
barreiras que separam os instantes somem, e ele percebe que a separação nunca existiu.
Uma união, imaginária, que se reteve na sua pele. O pensamento lhe agradava.
Destravou o mecanismo da arma. Sorriu, enquanto percebia seu destino.
A incongruência da ultima
respiração. Lembrou-se automaticamente de suas vidas. Dos risos. Das besteiras
que haviam sido ditas. Lembrou-se de cada e toda pessoa que lhe abraçou.
Repetiu seus mecanismos de defesas, mas optou por desarmá-los. Deixar fluir as
vibrações das coisas que haviam lhe mudado. Vá para o seu lugar especial, disse
seu professor. Em uma aula, vá para o seu lugar especial. Ele percebeu que
montou um palco da coleção de rostos que nunca havia lhe decepcionado. Das pessoas
que sempre ajudaram. Sentiu-se preso por aquela atmosfera. O silêncio,
constrangedor, daqueles que amava. O respirar, nervoso, daqueles que esperavam
pelo segundo antes da morte. Os olhares, incompreendidos, daqueles que
entenderam o andar da história. A quantidade de cenas patéticas que faziam
coerência a sua vida. Ele sorriu.
Esticou o braço, abriu a boca.
Enfiou a arma na posição perfeita. O intervalo de um segundo. Os olhares da platéia
que o amava. Seja feliz. Puxou o gatilho. Seymour morre.
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