Lugar nenhum.


O homem espera sentado na estação de trem. Seus pés batem repetidamente contra o chão, sem qualquer ritmo. Ninguém acreditaria que aquele era o mesmo homem que de manhã apresentava tamanha calma. Ao telefone, disse, silenciosamente, que a viagem não importava. Gostaria de vê-la. No entanto, a calma deveria pregar o acordo sobre aquele encontro. Parece impossível. Reunir os dois homens em só uma pessoa.
            
Quando ele acordou, resolveu limpar o apartamento. Tomou cuidado com quais CDs deixar tocando no som. Preocupou-se com a limpeza da cada canto e superfície. Comprou ingredientes para fazer a receita mais difícil que sabia. Preparou-se com um banho. Decorou músicas no violão. Reviu o apartamento. Ele estava em frangalhos, um pouco desesperado e ansioso. Quanto tempo não fazia que ele esperava por aquele exato momento. Em que a porta do apartamento finalmente fosse aberta para alguém que ele queria receber. Seus pensamentos eram confusos, e seu pé não parava de bater involuntariamente contra o chão.
            
A estação estava vazia. O trem parou lentamente se associando as colunas sombrias da ultima estação. Ele começou a se desesperar. Queria chorar. Não era possível. Rostos anônimos invadiam os corredores. Nada da mulher que ele esperava. Seu corpo, nervoso, atravessando as dezenas de pessoas com pressa. Seu andar devagar no meio daquela multidão teria sido um resguardo contra todo o mal. Ele, piamente, acreditava nessa possibilidade.
            
Com o passar do tempo, ele passou a desistir. O maquinista disse que tinha que ir embora. Ninguém mais chegaria. Ele começou a gritar: ela deveria estar aqui, ela prometeu estar aqui. Eu sei que ela brincava que nunca mais viria. Eu sei que deveria ter dito mais. Não era óbvio para todos que eu esperava uma pessoa atravessar essa maldita porta. Parece que ela não escuta. Estive parado no mesmo lugar, dizendo as mesmas coisas incansavelmente.

Sentiu-se invadido por um torpor indizível. Gritava com o maquinista como se ele fosse ela. Queria dizer tudo, e se sentiu imobilizado pelas inconsistências que saiam da sua boca. Eu comprei os ingredientes.  Arrumei o apartamento. Tudo está aqui. Esperando. Respirando. Não entendo. Não posso aceitar. Grita alto para qualquer um ouvir, já sabendo da possibilidade que não haja ninguém do outro lado da porta. Seus olhos se enchem de ressentimentos e rancor. As mensagens no celular confirmam o que ele já sabia. Ela não viria. Ir até a estação de trem, esperar. Não se importar com nada. Ele queria acreditar. Os passos de um ateu frente a um ato de fé. Um ato de ação no mundo. Um cético que decidiu que a realidade merecia uma chance.
            
Vimos o mesmo homem em outro cenário. Uma mulher está sendo atacada, incansavelmente, por dois homens. O nosso pobre herói se locomove e afasta ambos. Começam a surrar sua barriga. Tiram uma faca, e raspam no seu braço. Ele sorri. Coloquem um pouco de maldade nisso. Enquanto a mulher corre, ele começa a sangrar. A dor invade cada sentido do seu corpo. Todas as ligações e ossos estão sendo quebrados. Não importa. Continuem. Eles se cansam e vão embora. A mulher volta:

-Você está bem?

- Estou.

-Não quer ajuda?

-Eu estou bem.

-Tem certeza?

-Eu estou bem.

-Quero te acompanhar até em casa.

-Dona, vá embora. Essa não é porcaria de um filme bonito. Deixe-me sangrar. Não ficaremos amigos e teremos uma lição bonita no final sobre o amor e esperança.

-Quanto rancor.

-Prefiro a palavra ódio.
            
Ele se encaminha até o apartamento e toma um banho. O sangue se desloca até o bueiro do banheiro. Ele vê a água tornar-se sangue, seus sentidos se desvanecem. Respira fundo. Olha-se no espelho. Quero morrer. Não parece bom o suficiente. Ele grita. Quero morrer. Ninguém escuta. Pensa sobre a irreversibilidade de suas vontades. Se ele tivesse sido capaz de controlar o tempo. Controlar o mundo. Ele se sentia completamente diminuído pelas condições. Sentou-se no sofá. A música invadiu seu coração. O pé bateu no ritmo. Sem saber que o sangue estava prestes a destruir seus sonhos.
            
Nesse cenário, seu sofá representa outro lugar. As pessoas entram pela porta. Percebeu que o único motivo porque havia silêncio era porque havia esperado ela bater na porta. Esperava encostado com o ouvido contra a porta, esperando seu trem chegar. As mulheres que ali entravam, pareciam fantasmas; imagens desconexas. Iam e viam conforme queriam, sem nenhuma regra. Não reclamava, fazia pedidos ou ansiava por algo mais. A calma invadia seus sentimentos. A maioria dos homens passa a vida inteira tentando simular a completa indiferença. Não precisava mais desse simulacro. Era o pior medo de todos existencialistas. Um homem vazio.
            
Seu amigo lhe passou a garrafa de cerveja. Perguntou o que havia acontecido. Certo brilho nos seus olhos se perdeu. Você era incansável. Vejo você com várias garrafas no chão, um apartamento destruído e essa coleção de pessoas sem nome. Estou cansado. Você nunca foi assim. Nunca aceitou o que lhe davam sem perguntar. Não abria a porta de casa. Essas coleções de remédios anestesiantes esvaziam seu ser. Reaja. Luta de volta.

Não existem inimigos. Quanto antes você descobrir isso, melhor será, meu amigo. Não preciso reagir. Eu sou o ponto de contradição e reação de toda crença. Sou aquele famoso ponto incoerente que não deveria existir. Cale-se um pouco. Escute a música, a coleção de pessoas sem nome e me diga: importa alguma coisa, qualquer coisa, evento, ou ação. A história está aí, dada, destrutiva, aniquiladora e irremediável. Começar tudo de novo. A ilusão é sua que podemos repetir o ciclo mais uma vez. Não posso. Fico por aqui. Nesse sofá. Deixe-me em paz.

Estava deitado na cama, quando surgiu uma aparição na sua frente:

-Oi, eu sabia que mais cedo ou mais tarde você viria.

-O mundo é grande, garoto.

-Eu sei, corvo.

-Da última vez que você me chamou.

-Eu quase morri.

-Eu lembro.

-Vamos continuar de onde paramos. Destruir tudo.

-Não.

-Porque não?

-Destruir a mim.

-O mundo é grande.

-O que?

-Ele te destruiria mesmo sem você querer.

-Entendo.

-Faz um bocado de sentido.

-O que?

-Você, deitado na cama, enquanto ela está sorrindo em outro lugar.

-Todos sorriem, corvo.

-Menos você, garoto.

-O mundo é grande.

-É o que dizem.

-Vamos voltar.

-Para onde?

-Para lugar nenhum.

-Estive te esperando o tempo todo.

-Eu sei.

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