Hotel abismo.
O caos aparece como figura de pertencimento em quase toda mitologia
tradicional: um ponto de origem onde a criação humana conseguiu fugir. Os
deuses da organização precisaram tampar esse buraco, abismo, como forma de
criar a figura do significado. Destruíram o hotel do abismo. O lugar, em si,
nunca deixou de existir. No entanto, diversos homens se auto-enganaram do
contrário.
Ele
já havia estado naquele lugar antes, e sua mente entrou em remissão assim que
ouviu o coro das vozes que lhe cercavam. Se aquele era seu lugar originário,
ele não entendia porque ainda morria de medo. Ele andou em círculos, e se
encontrou no exato mesmo lugar que anos atrás. A memória ofuscou o significado
de tais lembranças. Suas embromações intelectuais não permitiam que seu
orgulho fosse aniquilado mais uma vez. Foi por isso que a primeira voz foi
tão contundente ao contar à história que vinha da memória do homem ali deitado.
Luzes
se iluminaram. No palco apareceram dois personagens permeados de vida. O
primeiro deles repetia, incessantemente, a palavra não ressuscitar. Era
um corolário de medida de segurança; por favor, não me ressuscite. Não se dê ao
trabalho. Gastar energia inutilmente. Isso vai acabar faltando. Era isso que
ele queria dizer, se não fossem os quarenta graus de febre e o sangue
escorrendo do seu corpo. O médico não entendeu a linguagem, mas disse com
gestos que ele viveria. Essa era a ultima lembrança que ele tinha de ter
chorado. Faziam mais de dez anos desde aquela cena e, ainda assim, o som do seu
choro abafado perseguia seus pesadelos. Ele não deveria se permitir chorar,
porque seria dizer ao seu próprio corpo que ele não tinha controle sobre si
mesmo.
A
lembrança foi ofuscada, e o coro de vozes cessou. Ele admitiu a si mesmo o
motivo por aquela tristeza. Os nomes e as figuras se misturavam; não era justo
qualquer uma delas querer um papel individual no que sempre foi um eterno ser
de papéis transitórios. Na sua memória, somente duas mulheres. No entanto, elas
poderiam ser as mesmas. Em que medida será que o homem estava no direito de
criar essa igualdade falsa. Pensou que o raciocínio era simples: se sua memória
era povoada de abandonos, ambas eram culpadas pelo mesmo crime. As promessas de
um mundo em comum, quando a expectativa era a total ausência de significado. O
que lhe assustava era o circulo; o eterno retorno. Estamos de volta ao hotel do
abismo, todos são bem-vindos.
A
memória é perturbadora, porque ela é acompanhada do caos. Não, deuses da
organização, vocês não negaram o caos ao fugir do medo. Vocês, simplesmente,
trocaram de nome. O medo pela razão. O acaso pelo plano. A vida pela representação
desta. Zeus se erguendo contra seu pai e os deuses egípcios se erguendo contra
a cobra do caos tinham a mesma missão: fugir do belo, suntuoso e moderno hotel
abismo. Sejam bem-vindos.
Outra
memória ofuscava sua mente. Ele conseguia escutar claramente o caos de vozes
que invadiam sua mente a partir do seu autor favorito:
“Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar. Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora. Detonaste
o pacto. Detonaste a vida geral, a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o limite das folhas caídas na hora de cair. Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do
que o ato sem continuação, o ato em si, o ato
que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada?”
As vozes retumbantes
invadiam seu coração. Isso já havia sido dito antes. Alguém dizendo que ele era
a figura que estava abandonando. Lembrou de um filósofo que abandonou sua
mulher para escrever milhões de páginas sobre o amor, e entregar o livro
no dia do casamento da sua noiva com outro. O garoto que se sentia
perturbado podia muito bem ter sido esse homem. Afinal, o princípio era
parecido. Obriga-se o abandono. No entanto, não foi ele que esqueceu. Ele
manteve-se resoluto na sua imaginação eterna de lembranças sem foco. Foi o
outro que lhe fugiu de lembrança. Era a outra pessoa não se lembrar daquele homem
que o levou de volta ao hotel do abismo interminável. Era o lugar dos
esquecidos. O lugar para onde todas as pessoas solitárias finalmente voltavam.
O lugar que ele pertenceu.
Ele não conseguia argumentar, o que havia incomodado do novo
palco. Um homem gritava com uma mulher, que não conseguia olhar no seu rosto. A
forma com que ele disse. O abandono não é meu, porque o que eu fiz foi tirar a
presença. Você tirou todo o resto. A violência das palavras de um ausente que
se sabia perdido. Os profetas de Delfos não seriam suficientemente
competentes para definir o futuro: o total e anônimo esquecimento. O marido
olhando no rosto da sua mulher, dizendo palavras que, no palco de idéias
metafóricas, equivaleram à morte.
Por último, mas não menos importante existe a resolução do
conflito. A imaginação humana é composta de fios intermináveis de dores e
prazeres recorrentes. Não existe nada de novo no que está sendo dito. O hotel
caos funciona bem há muito tempo. O que muda é o fato que quiseram mudar o nome
do hotel para gloriosos projetos de sucesso da razão universal de todos. A
crença do progresso iluminou o hotel, tirando seu verdadeiro nome.
Infelizmente, a fachada haveria de ter caído. Pode-se dizer que um dia existiu
um homem que foi o profeta dessa fachada derrubada.
Ele dizia que seu próprio discurso era corroído pelas suas
palavras. Os aprisionamentos de tais termos haviam tirado suas noites de sono.
As limitações das suas palavras lhe assustavam. Ao dizer, ele já delimitava
tudo que haveria de ser dito nos próximos minutos. O humano fora criado para
eliminar essa simples e triste verdade: somos criações dos nossos mitos
fundadores. O homem, tomado de emoção, começou a fala ao dizer que morria de
medo do seu local: aqui onde meus heróis jazem como memória. São seus fantasmas
que mantém sua sanidade num mundo em que o sentido de ser humano é um bocado
complicado. Sua voz se iluminou como um palco de luzes metafóricas e mundanas;
afinal, elas eram a mesma coisa.
O pobre homem levantou, e percebeu que aquele haveria de ser
o primeiro e último dia da sua vida. Se o que ele imaginou, realmente, era um
vislumbre de qualquer significado, logo seus dias haveriam de ser parecidos. O
hotel abismo não poderia dar mais medo aquele homem. Ele percebeu que ele nunca
havia ido embora de verdade. As promessas haviam-lhe consumido emoções e
sentimentos que ele nunca haveria de explicar em termos racionais. Entretanto,
sabia do desfecho desfavorável desde a primeira palavra dita. O ineditismo
dessa palavra foi arruinado, porque ele sabia do final da história antes mesmo
da vocalização do ar que saiu da boca do outro.
Havia um tipo de pedido inegável na sua voz. Um
reconhecimento, ascético, do que a felicidade era. Seria capaz de se reviver no
seu antigo hotel. Levantando as paredes, consertando as portas e ajeitando suas
metáforas. De uma forma que o encaixe dos dizeres não fosse restrito a morte
das palavras. O hotel, agora, brilhava de uma forma inimaginável. Foram seus
mitos que destruíram e reviveram tais construções. Não existe mais a
necessidade de qualquer comunicação, o empreendimento teve total sucesso de
público. Sejam todos bem-vindos ao hotel abismo.
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