Consulta ao psiquiatra.
-Você
sabe por que você está de volta?
-Úlcera
por estresse, eu entendo. Precisa de psiquiatra. Nós já tivemos essa conversa
antes.
-Já.
-Você
ficou puto comigo, porque disse que tudo não era sobre sexo.
-Você
leu a obra inteira de Freud com quatorze anos.
-Eu
estava entediado. Queria me matar. Sabe como é.
-O
que foi dessa vez?
-O
que aconteceu?
-É.
-Ela
me abandonou.
-E
daí?
-Ela
me abandonou.
-Pessoas
abandonam pessoas.
-Ela
não. Ela disse que não abandonava ninguém. Ela repetiu. Ela disse. Ela prometeu.
Ela argumentou. Eu deixei acreditar. Eu quis acreditar. Eu quis como nunca quis
algo na vida.
-As
pessoas não tem que cumprir suas promessas.
-Pois
discordamos.
-Vai
ver ela sofreu com tudo.
-Não.
-O
que?
-Você
nunca entendeu aquela teoria que eu tinha te explicado.
-Qual?
-A
diferença dos sofrimentos. Roubei isso de algum racionalista. Quer ver?
-Ela
não sofreu.
-Porque
não?
-Ela ama o sofrimento, a situação. É a forma como que as relações se configuraram. Eu não importo como objeto, entende. É mais ou menos isso, não existe sofrimento por minha causa; eu não existo, nem nunca pude existir. O amor que se contém na situação seria o mesmo, caso fosse outra pessoa na minha posição. O que ela ama é o sofrer, e não a mim. E o que eu gosto é dela, e não o sofrer.
-Não
consegui entender.
-Veja
bem, daqui a alguns meses. Eu serei esquecido, e outro objeto de sofrer e
prazer existirá. Não fara diferença quem seja. O sentimento é objeto, e não a
pessoa.
-E
com você?
-O
objeto é a pessoa, sempre. As pessoas não podem ser vistas como intermediários.
Formas de evitar a dor. Fugir da nossa realidade. Nós não usamos os outros para
fugirmos do que não aceitamos. Os outros são vislumbres de felicidade no melhor
dos momentos. E inferno nos piores.
-Você
não é justo.
-Você
não entende. O médico me perguntou por que eu sofria. Eu sofro pelo tempo. Eu
sofro pelo que sou. Se esse estômago meu está triturado, é por emoção, doutor.
Entenda bem. Entendo, hoje, que não adiantam as promessas.
-Por
quê?
-Algo
só importa se duas pessoas cumprirem sua parte. Eu sempre cumpro a minha, e
acabo abandonado. Entende. Essa é a metáfora. Você se queima por dentro, até se
consumir em feixes de destruição irremediável. Estou cansado de tudo isso.
-Você
já estava cansado quando tinha quatorze anos.
-Para
ser justo comigo mesmo, eu tinha esperança. De verdade. Eu acreditava que seria
amado, e que finais de filmes funcionavam. Não importa quanta filosofia você
lê. Você precisa sentir o que está sendo falado. Eu não acreditava na
destruição de tudo. Eu queria outra coisa. Queria aquele amor de domingo de
manhã na beira da praia. Precisava do clichê.
-O
que aconteceu de tão errado?
-Doutor,
lembra quando te expliquei ataraxia?
-Não
lembro.
-É
a capacidade da suspensão de juízos. É a forma de encarar a morte com paz.
Aceitar que você não tem juízo sobre a realidade. Ignorar a realidade. O barco
está prestes a ser destruído, e você fica parado. Respira fundo. Ignora o mar.
Seu sangue. Seu estômago. Você simplesmente chega aquele ponto em que nada mais
importa.
-Você
não chegou esse ponto.
-Olha
nos meus olhos, doutor.
-O
que?
-Eu
sou esse ponto.
-Não
diga absurdos.
-Quando
descobri que alguém não me visitaria. Eu briguei com um assaltante. Ele sacou
uma faca. Eu gritei olhando na sua face. Me mata. Ele teve medo. Ele saiu
correndo.
-Esse
é um típico comportamento destrutivo que estávamos falando.
-Calado.
-O
que?
-Você
não entende.
-O que foi?
-A
segunda vez que ela disse algo que me abalou. Fui à praia. Andei pela areia. Cai
no mar. Era dia de tempestade. Somente eu naquele mar imenso. Comecei a me
afogar. Devagar já não via a praia. Sentia meu corpo se perder em tempos imemoriáveis.
No entanto, eu...
-O
que?
-Eu
não queria morrer. Não daquela forma. Não daquele jeito. Comecei a nadar. Não
sei se foi por uma ou duas horas, mas eu cheguei até a praia. Os bombeiros
estavam esperando. Disse que nadava há anos. Uma mentira. Disse que não foi
perigoso. Eu não estava em condições de andar. Meu corpo inteiro estava
dolorido.
-De
novo, esse tipo de comportamento...
-O
que? O que você tem a dizer que eu provavelmente já não pensei dezena de vezes?
-Você
tem que se controlar.
-Vocês
estão errados. Eu estou perfeitamente controlado. Eu podia por esse mundo
inteiro em destruição. Podia. Eu optei me abster. Optei não dar minha opinião.
Foi por isso que ela foi tão cruel.
-Ela
veio até você?
-Ela
pediu que eu estivesse presente. Eu disse que ela não entendia. Para me deixar
em paz. Eu não queria isso. Não de novo. Estou velho.
-Você
tem metade da minha idade.
-Não
é sobre isso. Você entende. A idade é mental. A idade são as obsessões que você
cria no seu imaginário.
-E?
-Quando
eu disse para ela, eu expliquei meus problemas sobre me abrir. E ela
simplesmente destruiu tudo.
-Mas
a culpa é sua.
-Eu
sei, doutor. Eu sei. Porque você acha o estresse?
-Você
se colocou nessa posição.
-Eu
quis ser o objeto de sofrimento. Eu quis ser um nome sem rosto. Eu quis ser
esquecido daqui a um par de meses.
-Você
quer mudar isso?
-Você
não entende.
-O
que?
-Assim
que eu superar esse momento, a imagem de tudo me perseguirá centenas de vezes.
-Você
fala como se não houvesse escapatória.
-Somente
estou repetindo o que o senhor já sabe.
-Você
não vai se matar.
-Não
é sobre isso doutor. Você está confundindo tudo de novo. Isso é um detalhe.
-Detalhe?
Estamos falando da sua vida.
-Existem
formas mais cruéis de se matar do que tirar sua própria vida, doutor.
-O
que você quer dizer?
-Ataraxia.
Você parece nunca ter entendido. Porque diabos uma criança que mal tinha entrado
no ensino médio pesquisaria um termo grego?
-Você
quer esquecer.
-Eu
quero ser esquecido.
-E
agora?
-Você
já sabe o que acontece. Você assina o papel. Fingi que está tudo bem. Diz aos
meus pais que é um problema envolvendo o excesso de livros que leio. Você
sorri, enquanto narra essa história peculiar para a sua mulher. Você vai para
casa e diz a si mesmo que fez o melhor que podia. Pensa em mim com carinho.
Deseja que eu tenha uma boa vida. Entende a improbabilidade. Deseja conhecer
tal menina. Entende o que eu disse da teoria e objeto, e se pergunta se eu não
faço a exata mesma coisa. Afastará esse pensamento com um sorriso, pois sabe
que para mim existem poucas pessoas no mundo. Tais pessoas são tudo que me
define e significa. Entenderá que eu abandono as pessoas, mas mantenho seus
mitos.
-Você
quer prever o futuro.
-A
questão não é sobre prever o futuro, é sobre manter o passado. É sobre manter a
lembrança esquecida por todos. Maldição, doutor, eu sou um repositório de todas
as malditas teorias e objetos. Eu sou a alma abandonada de toda desgraçada
metafisica platônica. Sou o lugar em que os rios se encontram, e desaguam. Sou
o muro intransponível para um vislumbre de felicidade. O homem que se mantém no
espaço indefinido de palavras que não deveriam ter sido ditas. Você tem que me
deixar em paz. Eu sou o homem no barco, esperando alguém dizer que o mar não
destruiu tudo que viu pela frente. Essa pessoa, no entanto, foi embora. Agora,
nunca abrirei os olhos. Para saber, se a realidade faz qualquer diferença.
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