Projeto de um livro inacabado.
Capítulo
Zero.
Venho aqui apresentar a pobre
situação em que vamos nos encontrar pelos próximos tempos. Um grande relógio
foi colocado na beira de uma praça como símbolo do final da segunda guerra
mundial. Várias pessoas iam até aquele símbolo tentar amenizar seus pesares
incuráveis. A praça se contaminou de suplícios e preces pelas vidas que foram
eliminadas antes do seu tempo natural.
Um dos pais sofredores não agüentou
a hipocrisia de um relógio que marcasse o tempo, justamente, em homenagem, a
morte de seu tempo subjetivo. O tempo haveria de ter parado na sua mente no
momento desesperador em que seu filho foi morto. Por isso, o pai, que
trabalhava como relojoeiro, reverteu o sentido do relógio. A justiça seria
atingida, assim, que, o tempo fosse entregue de volta em direção contrária.
O argumento daquele pai não é
simples, porque ele queria ter a única coisa que sempre foi mantida a distância,
desde os tempos mitológicos gregos, pela imaginação humana: o tempo. Seria
absurdo desejar que as pessoas voltassem dos mortos e que os deuses se
levantassem. No entanto, o pai quis protestar contra tal impossibilidade
demonstrando sua irresoluta decisão. O tempo teria que andar de costas para que
sua vida fosse feliz. Seu filho teria que ressurgir na mais terna idade frente
aos seus olhos.
A gama das possibilidades da vida
dos dois personagens somente foi possível por causa da derradeira decisão do
pobre pai; o limiar das areias das ampolas dos segundos poderia ser retornado
ao zero. Assim, a situação em que se encontravam aquele homem e mulher poderia,
finalmente, ser resolvida ao contrário. Seguindo a vida de desencontros
virulentos e desmedidos, alguma chance de vida fora produzida pelas mãos
mágicas de um homem com um grande pesar. Seu encontro se tornou possível pelas
mãos de um acaso destruidor que fora revertido em seu significado. Antes, eles
passaram a vida sem se reconhecerem. Entretanto, eles tiveram a chance do
infindável encontro de almas semi-completas restauradas. O fim avassalador
estaria próximo, afinal estamos revertendo o começo.
1.
Estou
certa em lhe culpar por esse momento. Você veio diretamente passando nossa vida
em conjunto recitando suas suplicias de amor acerca do tempo. Não lhe
interessava saber sobre a felicidade que invadia o instante em que nos
falávamos; você pediu mais que isso. Você queria uma eternidade que eu nunca
fui capaz de entregar.
O
pior de tudo é que você, finalmente, se fez certo nos seus últimos suspiros.
Somente quando percebi, afinal, o peso que você havia marcado. Sei que para
você a fidelidade e o tempo importavam mais que os prazeres efêmeros que tive
em fuga do que éramos. Você repetia quase todo dia a mesma junção de fatores:
uma música, uma frase de um livro em comum e uma gama de rituais pudicos. Era
como um conta-gotas de um invendável princípio: levante, beija a testa, dá um
abraço colado do seu lado da cama e, finalmente, parte para o trabalho.
Não
compreendia seus ditames radicais acerca da nossa existência em conjunto. Com
as crianças, eu entendia que os hábitos ajudavam a construir os sonhos que você
tinha. No entanto, eu não era seu filho, mas a sua esposa. Nesse circulo
intermitente de expectativas frustradas, eu consegui te entender. O caixão
descendo o triste enterro abarrotado de pessoas lhe deu outras cores que eu
haveria de recordar.
A
sensação definitiva é que você teria seu sucesso. Sua crença infantil que nosso
amor semi-completo de almas foi ganho no seu jogo. Eu estava trabalhando por
longos trinta anos nesse jogo completo de sentimentos destrutíveis e efêmeros,
enquanto você se destruía contra meu corpo abraçado em manhãs de domingos. Se
eu ao menos conseguisse te explicar essa sensação que você me oprimia
irreversivelmente nos dias mais difíceis. Você me pediu uma vida imortal que
nem a mais cintilante e completa memória poderia um dia proporcionar.
Enquanto
seu caixão descia, percebi que você não cedeu o prazer de aproveitar cada dia
comigo em oposição a sua vontade de ser lembrado. Gradativamente, abandonou sua
missão para poder olhar nos meus olhos ridículos e patéticos. Oitenta anos de
idade no seu rosto e percebi que não importava mais se você seria lembrado. Ao
contrário, a sina das rosas e rituais românticos clichês que você havia me
imposto eram agora parte do que eu era. Ri do seu triunfo insuficiente e
restrito. Os seus olhos me apontavam uma destreza e percepção que antes não me
era criveis.
Você
caçoou de mim e dos seus escritos. Diversas vezes, pensou que o sistema era só
uma repetição de coisas insignificantes, mas nunca acreditou sinceramente
nisso. Ninguém que escrevesse tantas páginas cravadas de sentimentos, virais,
teria de ser tão descrente. As centenas de pessoas que me acompanhavam no
enterro comprovavam minha mais terna teoria: as páginas haviam suscitados
lembranças e compulsões nos homens que ali lhe prestavam homenagens póstumas.
Eu não precisava de nenhuma página, pois me lembrava de você em cada parte do
que me constituía.
2.
Não
acho justo como você fala de mim. Parece que eu fui o ditador da criação do
tempo. Eu queria algo bem simples de uma forma bem complicada. Eu queria você.
Enquanto reescrevo tais palavras, percebo a simplicidade desse pensamento. Se
eu criei vários rituais foi, tão somente, para te manter na sanidade. Era minha
exigência ver você sorrindo, a despeito de tudo. Foi o trabalho que me propus
na nossa velhice; superar nossos traumas e sermos finalmente felizes.
A
injustiça de tudo é que eu nunca achei que eu fosse o primeiro a morrer. Queria
te salvar até mesmo desse problema; de ter que imaginar a vida sem mim.
Provavelmente, você entrou em desespero ao pensar sobre quem manteria os
rituais que eu religiosamente instaurei. Minha única rotina era te abraçar; não
é o caso de ser algo tão difícil de existir. A minha mais tola intenção era ter
você para mim até o final: não seria possível já que nem no nosso casamento
tivemos nossa tão sonhada exclusividade.
Você
me culpa pelas suas traições. Você tem que entender que a culpa é sempre nossa,
e que tais termos, em longo prazo, não importam. Se eu tive algum sucesso, foi
em manter nosso foco na vida comum. Rotinas de ir ao restaurante, pedir seu
prato favorito, ver o filme que gostávamos, sorrirmos; vivermos em existência
descoordenada. A história que eu quero contar é dos acasos de nossa vida. Eu
fui o rei da incompletude, porque era o que menos acreditava que você fosse
possível. Depois de tanta coisa, nossos olhares trocados sem nenhuma conversa,
seu namorando me detestando, suas traições, os filhos, os problemas financeiros
e, de repente, nós estávamos no lugar que eu prometi.
Aqui
de tão longe, gostaria de te dizer que não faz diferença nenhuma acreditar em
algo. O lugar em que remeto essas cartas tem um tom de neutralidade que seu
mais tranqüilo sonho não seria capaz de reproduzir. Ninguém entende porque
continuo agoniado, querendo saber quando você vem. O absurdo de alguém em plena
paz e completude espiritual esperar outro alguém. Chamam-me de louco. Provavelmente
estão certos. Foi a loucura que teve que ser retida pelo estado por seu
potencial criador. Foi a loucura que permitiu as mais belas explosões de arte e
música.
Se
meus escritos têm qualquer valor, foi porque você impôs uma organização que nem
eu tinha coragem ou decência de fazer. Você foi meu repositório de todos os
vislumbres incoerentes e incalculáveis; o que lhe resta de precisão vem dos
seus critérios. Sua mente organizada, sua capacidade analítica e seu corpo
abraçado ao meu na hora de dormir. Daqui de cima, posso dizer, que finalmente
os clichês me atacam de perto. Queria que você estivesse comigo.
1.
Existe
uma história em doze contos peregrinos do Gabriel Garcia Márquez que lembra o
que eu penso da nossa existência em conjunto. Um casal era formado por um
mágico e sua assistente. A mulher, instável, havia abandonado mais de uma vez o
pobre mágico. A história provavelmente seria trágica, porém o escritor quis
mais. Ela bate num carro que vai a caminho para o hospício. Acabam confundindo
ela com qualquer outra pessoa sem sanidade. Não importa o que ela diz; ela é
uma maluca. Seu carro estava quebrado, e ela precisava de uma carona. No
entanto, ela acaba meses presa num lugar opressor e violento. Ela se sente
constrangida por sentir confusão e amor ao mesmo tempo pelo homem que nunca a
procurou. Por outro lado, esse homem se sente magoado por ter sido abandonado
mais uma vez pela mulher que ama. A comédia de erros do amor está estabelecida.
Finalmente,
ela consegue uma reunião com seu amado. A tortura psicológica foi tremenda que
ela já não parecia à mulher que um dia ele amou. Ela pedia pelos consensos de
amor que foram criados ao redor de meses de convivência; não deveria importar
suas roupas ou seus olhos, ele era o guardião da sua sanidade. Bastava que ele
conseguisse acreditar no que ela falava. A despeito de tudo que é dito, o ser
humano se sentiria bem com uma pessoa acreditando na sua existência; a sua
lógica de ver o mundo.
Foi
assim que eu me senti; perdida, confusa e esquecida. Você me abandonou quando
eu mais precisava de você. Difusas em mim existiam sentimentos crivados de
flechas metafóricas. Você se preocupou tanto com um pequeno detalhe como uma
traição que passou o resto do tempo esquecendo em acreditar na minha visão do
mundo. Eu estava perdida num asilo para loucos, sem nem ao menos ter você para
acreditar em mim.
Anos
depois, você contava a mesma história para os nossos netos. Dizia que havia
acreditando em mim a cada momento. Não tinha abandonado a esperança de estar
ali um dia contando a história. Você sempre se sentiu guardião da minha
sanidade. Infelizmente o hábito não era tão freqüente quando você argumentava.
A mitologia que você criou era parte do problema; eu era a mulher que pedia nos
seus olhos os costumes referentes à nossa criação. Queria ser reconhecida por
você. Não guardada como um repositório de falhas e transições a perfeição. O
que eu queria era o imperfeito com você. Queria que você estivesse aqui.
2.
Existe uma história que me faz
pensar sobre o dia do nosso casamento. Vejamos bem o que quero dizer. Um grande
poeta estava na guerra, quando soube do súbito adoecimento da sua mulher.
Desesperado, conseguiu retornar para casa o mais rápido possível. Ela havia
ficado cega por causa da contração de uma doença. O homem, então, disse que
seus olhos haviam sido feridos na guerra; ele também não poderia enxergar.
Logicamente, isso tinha sido uma mentira inventada na hora. Ninguém na casa
teria tido coragem de contestar o dono de uma grande fortuna e um herói de
guerra. Se ele queria ser cego, logo ele seria cego pelo resto dos seus dias.
Após longos doze anos, sua mulher
faleceu. Ele abriu os olhos e, finalmente, pode enxergar. Imagina a surpresa,
quando escutei tamanha peripécia. Um homem que destruído pela guerra, ainda
teve a coragem de fechar seus olhos. A capacidade de olhar está intimamente
ligada ao amor. Não é coincidência que os primeiros sinais são feitos com
visões de outro distante. Ao fechar os olhos, ele estava fazendo uma
declaração: não me importa as belezas restritas e violentas do mundo que me
vive, a cumplicidade do que olhamos terá que ser criado em consonância com
nossas vidas. Estou aqui, disposto a fechar as pupilas de forma apertada, e me reter
contra o sol. Um puro sentimento de simpatia levado ao absurdo de um homem
apaixonado. Pode-se dizer muito acerca do que almejamos fazer para outro,
infelizmente pode-se dizer muito pouco sobre o que realmente faríamos. Ao
tatearem invariavelmente os móveis da casa, os dois se encontravam em solução
fatídicas sobre o ser contemporâneo. Era a cópia que o marido havia criado em
si mesmo que refletia a cumplicidade prometida.
Você se engana ao repetir a si mesma
a noite que eu haveria te deixado em qualquer lugar, abandonada. No momento em
que nossos filhos nasceram, eu disse com os olhos mais sinceros, fechados por
ti, que teríamos que ser melhores do que aquilo que nos propusermos a ser. No
nosso casamento, eu disse essas frases singelas tomado de Uísque e pouca
ponderação: Seria capaz de fechar os olhos pelo tempo que fosse necessário. Se
eu soubesse que você estaria do outro lado, eu seria capaz de forçar minhas
pupilas, de uma forma, que nem a luz do sol teria capacidade de entrar.
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