Conto do amor surreal.
Duas mulheres
conversam, melindrosamente, em um grande apartamento no centro da cidade. A
primeira tentava acalmar a amiga que não conseguia parar de chorar. Era como se
a emoção acumulada em volta dos anos houve acumulado dentro do seu semblante.
Pacientemente, a amiga passava a mão nos belos cabelos da sua amiga. Seu
ex-marido havia acabado de declarar seu noivado com umas das mulheres mais
bonitas da alta sociedade. Ela repetia a si mesma e, logicamente, a sua amiga,
que o marido havia sido o único amor da sua vida inteira. Não lhe importava
essencialmente que os vintes anos haviam sido regados de violência e
infantilidade, porque seu sentimento estava prestes a explodir.
A amiga funcionava como um viajante procurando no meio de uma densa nevoa algum tipo de caminho; a sua amiga, porém, não haveria de fugir do sentimento que lhe aplacava. Ensimesmada, ela chorava sem parar. Desse jeito, ela haveria de perder todo o liquido do seu corpo; não importava. Quero mais que meu corpo seja uma expressão de um antigo rio perdendo suas ramificações a um novo empreendimento tecnológico. Quero que a antiguidade das mais belas relíquias seja destruída enquanto o mundo seja queimado. Minha querida amiga.
O telefone começou a tocar. O
nervosismo espalhou-se pelo seu corpo em pequenas linhas de ritmo. O tom do
telefone a contaminava com sua simplicidade. Poderia ser seu marido; dizendo
que se arrependeu, e quer ter a vida de volta. Os dias passando vendo televisão
abraçados; a banalidade da insuficiência de um cotidiano idílico que nunca
existiu. Era a mãe do marido. Ele está
extremamente doente, o casamento foi cancelado. A mulher entrou em pânico.
Começou a colocar a mão sobre a boca como sinal de resignação. O choro começou
a sumir, restava, agora, somente um rastro da sua solidão. Seu marido casar com
outra mulher não seria nenhum problema, em comparação a sombra de uma memória
de um morto que nunca haveria de abandonar-lhe.
A perspectiva é algo importante
que há de sempre faltar na existência humana. Homens sonham desde a antiguidade
com um ponto de vista que se assemelhasse a Deus. Os primeiros cientistas eram
homens que acreditavam que sintetizando o mundo poderiam explicar Deus. A
ciência tentou por muitos anos se unir a filosofia para dar vazão a um Deus
científico. A razão ordenadora dos fenômenos científicos haveriam de ser o
espírito manifestando-se no mundo. Occam
disse que se de duas explicações, uma fosse a mais simples, logo ela deveria
ser, logicamente, melhor. Foi nesse ponto da história da filosofia que a
humanidade tomou consciência de um problema essencial: se a explicação mais
plausível não envolver a certeza de um Deus, nem da perspectiva unificadora de
toda a humanidade, o que, então, restara de todo o mundo. A resposta, mais
obvia, foi que tudo poderia ser unificado por meio da filosofia medieval. Mesmo
o renascimento, debateu-se com a insuficiência da razão ou da espiritualidade,
por outro lado.
O ponto básico é que, como seres
humanos, somos devidamente incapazes de ver a fotografia geral das ramificações
de nossas vidas. Somos incapazes de prever o que nossas ações iram afetar o
mundo a nossa volta. Somos movidos por um destino que queremos, mas nunca
seremos capazes de dominar. Se ao menos, houvesse um lugar em que a humanidade
fosse resumida em um exato e restrito ponto haveríamos de poder prever o que
somos. Esse ponto, porém, até hoje não foi localizado.
O homem levantava da sua cama de
hospital. Havia feito somente um pedido para os seus médicos; sua ex-mulher não
poderia vê-lo. Respeitando um homem que haveria logo de morrer, seus médicos
seguiram, a risca, suas intenções. Sua noiva protestava; você tem que contar a
história toda em algum lugar. É inacreditável para nunca ser contado. O velho
sorria com displicência, afinal seu mote não era ser reconhecido. Aquela noite,
bizarra, havia sido essencial na história, mas não poderia ser contada. Talvez
aqui fiquemos confusos com tamanha determinação, no entanto, homem com grandes
segredos são sempre mais interessantes.
Ele começou a pensar quando
recebeu os resultados graves dos exames da sua ex-esposa. Chorou exatamente por
um minuto inteiro sem restrições. Passado o tempo, ele começou a pensar nas
opções que tinham lhe restado. Uma delas seria contar a sua esposa que ela iria
morrer dentro de dias. Não parecia promissor do ponto de vista emocional.
Lembrou de um antigo conto que sua mãe lhe contava antes de dormir. Há muito
tempo atrás um monstro se mudou para uma casa no final do quarteirão, sua sina
era a imortalidade. Seu único dever era cumprir os pedidos da humanidade;
qualquer coisa que lhe fosse pedida deveria ser atendida. Com uma condição.
Promessas têm custos. Milagres dependem do choro de um anjo, sua mãe dizia. O
monstro anotava num pequeno papel as condições do acordo; se a pessoa aceitasse,
qualquer coisa poderia acontecer. Se a promessa não fosse cumprida, a alma do
devedor seria enviada diretamente para o inferno pelos cães de Hades. Não
parecia promissor.
O homem saiu andando pela sua
antiga rua na esperança que houvesse um grau de verdade naqueles contos
antigos. Andou até a porta da casa mal
assombrada. Os escombros eram completamente aterradores; rosas negras nasciam
pelas cercas; lapides de homens que não cumpriram as condições eram marcados
por inscrições macabras: aqui jaz o homem levado pelo cão do inferno, aqui jaz
o homem que teve a cabeça cortada por Hades e aqui jaz o homem cujo coração foi
comido por um crocodilo gigante.
O homem ajoelhou-se frente à
porta e pediu pela vida da sua mulher. Grito, implorou, esbravejou: sua vida,
em troca, de qualquer coisa. Um barulho ensurdecedor tomou conta da porta
daquela imensa mansão sombria. Medo invadiu cada centímetro quadrado daquele
homem. Um papel com as segundas condições estava escrito na mais perfeita
caligrafia:
1. Você morrera dentro de dez anos.
2. A partir de amanhã, você nunca mais pode dizer
uma palavra ou olhar para o rosto da sua ex-mulher.
3. Divirta-se.
4. Não cumprindo tais condições, tais coisas
aconteceram: cão do inferno, crocodilo comedor de corações e, finalmente, Hades.
Ele havia esperado dez aos pelo momento da sua morte. Tinha se divertido
muito. Vivia com a felicidade saber que havia salvado a única mulher que
sinceramente amou. Continuou seus dias se consumindo na mais terrível e simples
alegria. Se você lembrar-se da mulher chorando no começo do conto, a
perspectiva completamente muda. O choro retirado das suas mais ínfimas
conseqüências não é nada comparado com a determinação ferrenha daquele homem.
Seus olhos sorriam com o desespero daqueles que estão prestes a morrer. O
latido dos cães se aproximava dos seus ouvidos. Sorria ao imaginar seu coração
sendo pesado numa balança com uma pena; ele poderia jurar que a pena seria mais
pesada e que sua pós-vida seria brilhante.
A última vez que ele poderia ver sua mulher antes que a meia-noite
começasse a maldição. Ele correu a sua casa; sabendo que tinha somente três
horas até o derradeiro prazo. Subiu as escadas como se fosse ser morto na
cadeira elétrica. Fez sexo intenso com a sua mulher por duas tremendas horas. A
energia tomava seu corpo, pois sabia que aquela haveria de será a última vez
que ela veria seu corpo antes da sua morte. Quero te dar uma lembrança de mim
mesmo. Não das minhas emoções. Não quero
que você me imagine desse jeito. Tenha em mim a lembrança do melhor sexo das
nossas vidas; do corpo que, pela sua salvação, será morto. Ela sorriu, sem
parar, para seu futuro morto marido. Depois disso, ele disse a ela no tom mais
calmo possível: trai-te com várias mulheres, nunca mais quero ver seu rosto na
sua vida, não me procure, nosso casamento está acabado, quero que se lembre de
mim como o homem decrépito, injusto e pérfido que sou. Tais palavras teriam que
ser o mantra que a mulher haveria de se repetir para esquecê-lo. No entanto,
ela sempre teve em mente que aquilo soava como uma mentira; a vida soa como uma
mentira.
A comédia da insuficiência da perspectiva se repete nesse instante. Um
homem está morrendo, enquanto uma amiga passa horas dizendo das más qualidades
do homem que operou um milagre. Se não fosse pela pena de alguns homens
obcecados com a vida humana, tais informações nunca seriam ditas. A noiva do
seu ex-marido me contou essa história, um dia, bêbada na minha cama. A história
sobre o homem cafajeste que foi sempre o mais puro e simples de nós. Sobre a resolução
infindável de um amor que já nascia incompleto. Não era sobre o amor, a
história. O resumo sintético do posto de vista universal é, simplesmente, a
determinação de um pobre homem a beira da morte de manter sua mais nobre
promessa, enquanto o mundo lhe taxa do pior de todos os homens já vivos. O
ponto universal que une todas as consciências não é nada mais do que a simples
incompletude da nossa existência. Não é uma história de amor; é uma história da incompletude.
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