A morte das palavras.
O
garoto senta na cadeira do médico. O imenso homem olha para o pequeno menino, e
se espanta. Ele havia sentado na sua cadeira, subvertendo um sistema de
hierarquias concebido há centenas de anos. O médico começou a dizer, com um
longo tom grave, que o silêncio da criança tinha que ser destruído: Não é
possível que você fique sem falar, você tem somente doze anos, na sua idade não
existem motivos que roubem suas palavras, por favor, volte a falar, qualquer
coisa. O garoto sorriu, enquanto disse as primeiras palavras em mais de dois
anos:
-As
palavras não têm nenhum significado.
Se ao menos, alguém descobrisse os
dizeres por trás de tão simples palavras. Eles perceberiam que o que o garoto
tinha em mente era algo de extrema gravidade. As palavras não têm nenhum
significado. Morre seco na sua garganta, o ar que recria a vocalização de meras
passagens de ar pelas cordas vocais. Seu sonho era recriar um mundo inteiro de
ruídos incoerentes. O garoto lembrava-se das palavras patéticas que lhe foram ditas
a beira da morte.
Filho,
enquanto eu digo essas palavras, quero que você compreenda. Não existe nenhum
lugar para aonde estou indo. O cheiro desse lugar é neutro, assim como as suas
cores. Não concebo encontrar sua mãe aqui, mesmo se encontrasse, não sei se
teríamos algo sobre o que conversar. Eu fiz um voto de silêncio com quarenta
anos de idade, e sua vida foi marcada por isso. Gostaria de pedir desculpas. No
dia em que eu descobri sobre as promessas inúteis da sua mãe, meu mundo entrou
em colapso. Foram as mentiras que me magoaram. A forma como as palavras se
destituíram de total significado frente a uma mente incoerente. Eu me lembro de
imaginar minha vida em família o dia inteiro, enquanto olhava para o rosto da
sua mãe. O dia inteiro obcecado por uma pequena imagem de fadiga emocional no
momento em que nossos corpos se encostavam. Lembro da agonia de saber que não
havia nada daquilo que fosse real. Um dia, o padre me disse algo exato. Não
importa se existe ou não Deus, o que importa é a capacidade de tal imagem
coibir o comportamento humano. Eu lhe disse a mesma coisa da moral e do amor. Ele
riu, pois sabia que eu já não acreditava em nenhum dos três. Naquele momento,
parei de dizer qualquer palavra. Eu sabia que os ruídos inconsistentes que
saiam da minha boca não haveria de ter qualquer explicação plausível. Foi a
minha imaginação que me matou, pois ela era capaz dos eventos mais cruéis. Das
promessas irrealizadas. Dos traumas reescritos pela eternidade numa comédia de
dizeres incompletos. Peço desculpas pelo o que lhe causei. Eu só queria ser
capaz de não estragar o significado de palavras inexprimíveis.
O Homem senta com um ar de
gravidade na cadeira; seus livros se empilham incoerentemente. Sua sina é
pensar acerca de possibilidades meramente imaginárias; tal como o homem que
concebeu o sistema político que ele estudava. Seu medo era ficar tanto tempo
encharcado das desgraças que o circundavam nos documentos, que ele próprio
virasse o abismo que temia. Seu sono não vinha há semanas. Respirou fundo.
Contou até dez. Os psiquiatras haviam lhe ensinado esse pequeno truque aos
cinco anos de idade. Não havia adiantado de nada.
Sua idéia era um bocado simples se
você pensar de forma prática, e não metafísica. Ele queria reinventar o acaso.
A teoria sempre foi à vontade violenta de repreender toda aleatoriedade do
mundo; se você organiza segundos critérios, nomes e classificações, não há
preocupação com o acaso. Se sairmos do acaso como conceito, tudo fica de cabeça
para baixo. Tudo fica confuso. Não foi mais uma vontade vinda da metafísica que
obrigaram todos a serem violentos; ela estava ali antes mesmo de a nomearem.
Foi o olhar. Ele sabia que o caos era propício a morte, porém não era capaz de
explicar em palavras cientificas o que ele queria dizer com acaso. A forma como
tudo dá errado repetidas vezes. O tiro perdido que acerta a cabeça de um
inocente pela rua. Uma combinação genética especifica com problemas de
esquizofrenia que poderia não ter existido por uma questão de combinação
aleatória. Um ditador se erguendo e matando milhões. O acaso estava ali, do
jeito que ele desmanchava qualquer ilusão sobre a unidade de todos nós. O acaso
era seu amigo; talvez seu único companheiro.
Entendo
o que você quer dizer. Digo. A irresolução sobre tudo. Quando sua mulher o
abandonou por outro, sua primeira reação foi gritar acaso. No dia em que ele
estava doente, ela conhecerá o amante. Acaso. Vontade humana. Deusa
incontrolável. Tudo um problemão. Preciso voltar a dormir. Coerência. As palavras
são secas. Duras. Inexistentes. Não consigo. Mais. Imaginá-las. Durmo. Tento.
Dormir. Será que as palavras têm gosto. Espírito. Morte. Será que elas dormem.
Comigo. Ou somem. Não consigo ser mais coerente.
O
homem dirigia o carro em alta velocidade. A mulher olhava assustada, enquanto o
medidor apontava mais de cento e vintes km por hora. Seu sangue pulsava. Ela
havia dito que ele não havia significado nada. Eles não eram semelhantes.
Depois de dez anos casados, nós não temos nada em comum. Nem que fosse para
admitir que pelo menos esses dez anos fossem comuns. Ele me faz gozar mais,
sabe. O amante. Ela diz. Os olhos se enchem de uma lágrima que não ousa sair do
seu semblante. O garoto sentado na cadeira do psicólogo começou a falar, mas se
arrependeu radicalmente de sua decisão. O
homem sentado na mesa sentiu o poder da palavra acaso. Ela não poderia sair do
carro, pois morreria rolando fora do carro naquela velocidade. Ele acelerou até
o máximo da velocidade. Sem saber o que faria. Ele queria matar todas as
malditas palavras. Naquele momento, a mulher havia roubado o significado do seu
tempo, e isso é um crime para o qual não existe punição. Mas deveria. Roubo do
tempo imaginário. Dez anos de prisão. Não deveria ter feito isso. O homem vai
diretamente em direção a árvore mais próxima, enquanto sua esposa entra em
pânico. Ambos estão prestes a morrer. Acaso. Completo e irrestrito acaso que se
mescla com a total morte e sono das palavras. Ela tem, sim, o direito de
nascer, morrer, respirar e dormir. A vida das palavras se recupera naquele
momento em que ambos deixam de existir.
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