Sangue existencial.
Ele
cuspia sangue. Naquele momento havia se isolado da festa inteira; estava num
banheiro sozinho. Ninguém o procurava. O sangue estava em suas mãos; na
história da medicina ocidental o sangue normalmente não era visto como um bom
final. Sangue era um sinal de pecado, de um possível excesso. A virgem que faz
sexo. O moribundo na cama de hospital. O sentimento ali era radicalmente forte:
ele sabia que estava totalmente sozinho. Ele conseguiu contar seus fracassos em
basicamente três pontos:
Primeiro
ponto geral: Ele fracassou com as três mulheres que ele gostava em somente uma
noite. Ele havia se apaixonado por uma mulher; ela agora se encontrava com um
rapper. Ela era linda e tinha os olhos ligeiramente claros. Ele lembrava especialmente
de querer beija-la, mesmo sabendo de tal impossibilidade. A segunda era mais
dúbia, porque ela havia partilhado um momento com ele. Segundos antes de
partilhar um momento com outra pessoa. Tudo bem. Estamos falando de um mundo
moderno. Extremamente moderno. Finalmente, a última tinha um problema de
desconforto. Ele simplesmente não entendia o que havia acontecido ali; na sua
projeção havia muita rejeição e a sua mente. Se até alguém que simpatizava com
ele, conseguia lhe legar esse nível de rejeição; qual sua chance real?
Segundo ponto geral: Ele não ganhava muito dinheiro. A carreira de técnico de fotografia havia lhe proporcionado pouquíssimo dinheiro. Trabalhava com fotos clichês de anúncios com belas modelos. De novo, ele detestava aquilo. Seu sonho de ser fotógrafo, vinha da ideia simples que ele queria moldar o mundo. Ver seria moldar; várias histórias da filosofia haviam sido feitas a partir do olhar. Aprender a enxergar era tudo que ele sonhava por boa parte da sua vida. Agora ele tirava fotos de mulheres excecionalmente bonitas para propaganda de um prostíbulo.
Segundo ponto geral: Ele não ganhava muito dinheiro. A carreira de técnico de fotografia havia lhe proporcionado pouquíssimo dinheiro. Trabalhava com fotos clichês de anúncios com belas modelos. De novo, ele detestava aquilo. Seu sonho de ser fotógrafo, vinha da ideia simples que ele queria moldar o mundo. Ver seria moldar; várias histórias da filosofia haviam sido feitas a partir do olhar. Aprender a enxergar era tudo que ele sonhava por boa parte da sua vida. Agora ele tirava fotos de mulheres excecionalmente bonitas para propaganda de um prostíbulo.
Terceiro
ponto geral: Seu sonho de tirar fotos no seu tempo livre tinha lhe proporcionado
nenhum tipo de sucesso. O que ele fazia somente pelo prazer era justamente o
que ninguém tinha qualquer interesse de ver. Por isso, ele ficava extremamente
magoado com sua vida. Achava que era um gênio não descoberto no começo da sua
juventude, porém tal ilusão já havia sido desmascarada em diversas situações
pela falta de conhecimento e inovação.
O
sangue escorria da sua boca, enquanto ele se perguntava o valor da sua vida.
Era interessante ele lembrar que seu médico tinha ligado; precisava falar com
ele. Preconizava aquele momento há anos. Saber que se tem uma doença é muito
diferente de sentir que se tem uma doença. Sabia agora que havia algo muito
errado no seu peito. De novo, a doença podia ser uma imaginação. Algo
existencial que ele havia criado para justificar sua fragilidade. No entanto, o
sangue jazia na sua mão. Ele sabia que suas entranhas se retraíram, enquanto
ele pensava em todos os seus fracassos. Não enxergava como as pessoas não
soubessem o quanto haviam o perturbado; por favor, vão embora. Vocês estão
incomodando. Vocês nunca estão aqui. Principalmente quando eu estou sangrando,
vocês todos estão em outro lugar. Beijando outras pessoas. Procurando qualquer
pessoa que não seja ele mesmo. Absurdo. Absurdo. Absurdo. Era isso que ele
ouvia quando externalizava o que pensava. Tudo bem. Só você não falar mais que
ninguém poderá considerar o que você diz absurdo. Tudo bem.
Ele
entrou em pânico, porque sabia exatamente os procedimentos que vinham a seguir.
Conhecia de cor todo o sistema de exames. O esquema de resultados. Tenho sangue
existencial, doutor. O engraçado é que ele agora está na minha mão, eu não
esperava por isso. Era para se manter escondido no corpo. Sangue idiota. Ele
decidiu que enquanto ele não comentasse isso para ninguém, logo isso não
existiria. Prometeu a si mesmo guardar segredo pelo maior tempo possível. Um
problema somente seria isso, se ele o reconhecesse como tal. Acalmou-se.
Sozinho naquela privada de um banheiro sujo, rejeitado pelo mundo, ele sabia
que não queria mais estar do lado de fora. Sabia que o incomodaria. As pessoas
não o entendiam. Como explicar para a mulher que compartilhou um momento que
ele, que, na verdade, ele queria passar longas tardes com ela. Não conseguiu
compreender isso de um simples beijo que, logo após, seria dividido com outro.
Porém, ela parecia não entender todo seu romantismo da forma com que ele pegou
toda sua bebida e ficou para ele mesmo. As pessoas, hoje em dia, não conseguem
nem perceber um eu te amo quando você rouba a garrafa inteira de álcool.
Sua
experiência com médicos não era muito boa. Ele se lembra de uma conversa bem
assustadora, no momento em que ele brincava com lego em outro quarto:
-Seu
filho tem o que podemos chamar comportamento anti-social.
Todos
ficaram mudos na sala.
-Ele
pode ter o que nós chamamos de imaginação excessivamente fértil. Pelo momento,
isso não significa nada. Num futuro próximo, pode significar muita coisa.
Espero que vocês tenham consciência de que ele terá dificuldade ao longo da
vida. Nesse exato momento, ele está se enxergando em outro lugar para não ter
que lidar com essa conversa. Mesmo sendo uma criança, ele é totalmente capaz de
saber o que está acontecendo. Você pode observar no rosto dele.
Para
ser justo com o médico, se ele soubesse tudo que aquele fotógrafo era, ficaria
bastante assustado. As olheiras, o pesar e o tipo de visão que ele tinha do
mundo. Sangue existencial, doutor. Não sai das mãos com pouco sabão.
A
segunda situação que lembra sempre a sua personalidade patética foi com uma
professora muito bonita do jardim que o reencontrou após anos:
-Oi.
Você se lembra de ser meu aluno?
-Não.
Não lembro.
-Que
estranho. Você era bem apegado a mim. Eu queria que você fosse à escola falar
com alunos problemáticos. Falar do seu exemplo.
-Exemplo?
-Você
não lembra?
-Não.
-Bem,
toda vez que eu ia embora da sala, você começava a me morder. Sem parar,
obsessivamente. Você era bem estranho. Hoje em dia você é um homem totalmente
bem socializado. Queria que você falasse com algumas crianças problemáticas.
Totalmente
bem socializado. Repetição de termos sem propósito nenhum.
Respira
fundo. Eu estou no banheiro de uma festa. Tem sangue na minha mão. Não tenho
ninguém para ligar. Ninguém com quem falar. Queria chorar. Pela primeira vez em
vinte e cinco anos, ele tem uma vontade danada de chorar. Chorar sem parar. Por
tudo que ele era, e sinceramente por tudo que ele deixou de ser. Por toda a rejeição. Por cada uma das três
mulheres que não havia entendido quem ele era. Queria ir até elas e dizer
qualquer coisa impressionante, mas sabia que isso já não era possível. Talvez
nunca tenha sido. Ele sempre foi um homem tímido. Extremamente feio. Pouco
esportivo. Um péssimo fotógrafo. Do que adiantava. Não chorou. Segurou o choro
como se aquilo fosse sua última esperança. Ele negava o sangue na sua mão,
assim como negava o choro. Era dizer ao seu corpo que ele não conseguia manter
controle sobre si mesmo. Dizer a sua vida que ele não tinha controle sobre seu destino.
Ele quase chorou. Quase. Talvez ali, ele fosse redescobrir algo sobre sua vida
e quem ela era. Mudar tudo. Finalmente ser feliz. No entanto, não foi isso que
aconteceu.
Seu
amigo deu carona até sua casa. Surpreendentemente, ele se encontrava lúcido.
Havia gastado o resto do seu dinheiro em uma garrafa de vodca, e havia bebido
ela inteira. Na privada. Cuspindo sangue das suas entranhas. Seu amigo estava
preocupado e perguntou o que havia acontecido. Ele precisava mentir. Algo que
fosse verdadeiro, mas não totalmente a verdade:
-Sabe.
As duas não sabem o que eu sou. Eu não pertenço a aquele lugar. Elas buscam
pessoas para beijar e eu não estou naquele consenso.
-Porque
você se preocupa com isso?
-Não
me preocupo, mas é que eu sou egoísta. Já gostei de uma delas. Não aguento
isso. O repetir dessas cenas em festas ruins. Essa vida repetida. Não aguento
mais sofrer sozinho. É muito difícil. Eu quero muito chorar.
-Porque
você segura o choro?
-Porque
diabos eu choraria? Você está maluco?
-O
que tem demais?
-Eu
controlo meu corpo. Eu controlo minha vida.
-Mas
se elas não te entendem, porque você não explica?
-Não
quero explicar porcaria nenhuma.
-Então
deixa de ser babaca e tratar elas mal.
-Tudo
bem.
-Tudo
bem?
-T-U-D-O-B-E-M.
-Obrigado
pela compreensão. Deixar-me em casa.
Compreensão.
O Borges escreve algo muito bonito sobre isso. Ele começa descrevendo o dialogo
como um entender o outro. Ele era um universalista, acreditava na verdade: “O
dever de todas as coisas é ser uma felicidade; se não são uma felicidade são inúteis
ou prejudiciais. A essa altura da minha vida sinto estes diálogos como uma
felicidade. O dialogo tem que ser uma pesquisa e pouco importa que a verdade
saia da boca de um ou da boca de outro. O importante é chegar a uma conclusão,
e de que lado da mesa vem isso, ou de que boca, ou de que rosto, ou a partir de
que nome, é o de menos”.
Borges,
você que era bem mais sábio que ele; conseguiu criar uma vida de total crença.
Perdendo a visão, suas poesias ficavam cada vez mais claras; concisas. O problema
é que naquele vaso em que ele se encontrava cuspindo sangue não havia nenhuma
compreensão. Nem por um segundo. De nenhum lado. Verdades a serem encontradas, aquele
homem não conseguia ver. Tudo que ele sempre quis foi ver, o que, ironicamente,
um cego havia lhe ensinado mais sobre visão do que qualquer outro homem. Mesmo
assim, ele não conseguia ver um palmo à sua frente. Não havia ninguém para ver.
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