Plano de contenção.


Plano de contenção. Era o que ela falava para si mesmo enquanto mudava seu apartamento de lugar. Mudar os livros do lugar iria organizar sua mente. Ela planejava, de novo, outro momento da sua vida. Teria sido aquele seu erro inicial? Casamento jovem. Fracasso de ter filhos. Fracasso do casamento. Traição. Trabalho com alta recompensa financeira, porém nenhum prazer. Se ela não tivesse planejado tudo até o último momento, será que ela não seria mais feliz? Ela se perguntava enquanto fazia um plano de contenção. Algo tão genial que organizasse toda sua vida em um suspiro. Começou a recitar formulas de repensar sua vida:

1. Preciso sorrir com alguém.

2. Um trabalho em que eu seja feliz pelo menos de vez em quando.

3. Menos planos de contenção.

Refez suas idéias; começou a recitar seu plano de contenção no dia em que seu marido avisou que havia lhe traído com outra mulher. Naquela noite, a garagem estava aberta e os dois estavam fazendo sexo no carro. A amante e seu marido no mais pleno gozo. O barulho era imenso; o vai-e-vem dos seus corpos em ecos violentos de força sexual. Nada desse tipo jamais havia acontecido entre os dois. Com a amante, o sexo com seu marido parecia completamente diferente. Ela começou a entrar em pânico, ficar sem ar, querer fugir dali. Enquanto andava obsessivamente pela casa, percebeu que o armário da cozinha podia ser o único lugar longe de tais ruídos. Uma faca no chão. Seu próprio sangue caindo devagar, ela começou a parar de escutar. O sangue escorria do seu braço. Fez cortes seguidos de uma forma bem organizada; pequenos cortes se seguiam de maiores gradativamente, como se aquilo destituísse sua ação de sentido.

A idéia inicial foi jogar fogo no carro. Entendam bem, somos todos psicopatas; alguns agem sobre isso, outros ignoram seus impulsos. Seu marido havia lhe contado a novidade, sem saber que ela tinha escutado os dois gozarem juntos na sua garagem. Ela nunca contou o que aconteceu para seu ex-marido, porém ela tinha ficado em posição fetal dentro do armário da cozinha recitando uma simples formula tentando apagar os ruídos ensurdecedores do sexo:

1. Nunca mais falar com ninguém do seu mundo antigo.
2. Nunca mais sentir qualquer sentimento.
3. Nunca mais almejar a felicidade.
4. Nunca mais querer algo que não seja do seu alcance.
5. Nunca mais sentir nada.
6. Nunca mais desejar nada.
7. Você é o resumo de todos os traumas.

Ela percebeu que as frases se repetiam por causa do excesso do álcool no seu sangue naquele momento. Ela começou a se perguntar sobre o que lhe restava na vida: a dúvida. Quando ela era jovem, ela havia pensando que era parente distante de um filosofo francês. Ela era ainda uma criança, quando procurou sua professora para saber da possibilidade do parentesco:

-Professora, eu sou parente do filósofo que estudamos?

-Isso seria praticamente impossível. De onde você tirou uma ideia tão boba?

-É porque ele faz planos de contenções tão bonitos.

-Planos de contenção?

-É. O que mais pode ser querer retirar tudo na sua vida até somente restar à dúvida? Puro plano de contenção. O cara criou também o plano cartesiano, porque aquilo é o oposto a tudo que não é planejado. Plano de contenção. Eu faço isso.

-Você faz isso?

-Desde que meus pais se separaram, eu tenho feito planos: 1. Ir à escola. 2. Sorrir uma vez por dia. 3. Não falar mal da professora. 4. Abraçar papai e mamãe quando eles estiverem tristes.

-Parece um bom plano.

-Meus planos são ótimos, professora.

Em um dia, em direção ao trabalho ela encontrou um homem tocando violão na rua. Era impressionante o quanto ele era bom naquilo. Como o homem podia ser um mendigo? Ele era o melhor músico do mundo. Sem nenhuma explicação plausível para seu comportamento, ela foi até ele sorrindo. Pediu aulas de violão, em troca disso ela daria dinheiro o suficiente para sua alimentação. Temos um acordo? É lógico, senhora, mas eu não sei tocar esse negócio direito. Não tem problema, porque eu acho você o melhor músico de todo o mundo.

A primeira vez que ela pegou no violão, o mendigo começou a rir sem parar. Não era somente a falta de jeito, mas a vergonha que ela tinha em tentar tocar uma nota; cômico. A primeira coisa que o mendigo tinha que lhe ensinar era que ela podia tocar com força as cordas. Ela parecia uma virgem na sua primeira noite sexual, totalmente sem jeito e desastrada. Ela começou a rir sem parar ao conversar com o mendigo:

-Eu sou provavelmente a pior música do mundo.

-Com certeza. Nunca vi alguém tão ruim na minha vida.

-Sério?

-Com toda a certeza. Ainda quer aprender?

-Quero. Muito.

-Tudo bem. A primeira coisa que você tem que aprender é que você tem que fazer barulho. Toca alto.

Ela começou a errar todas as notas e todos os ritmos em somente uma batida. Era frustrante:

-Não consigo.

-Consegue sim.

-Qual seu plano de contenção?

-Como assim plano de contenção?

-O que você planeja fazer como segurança, caso coisas ruins aconteçam.

-Moça, eu moro na rua. Não existe plano de contenção, você é retardada?

-Tudo bem, eu te ajudo com seu plano de contenção:

1. Roupas limpas. 
2. Tomar banho.
3. Se alimentar.
4. Ensinar violão para a mulher mais bonita do mundo.

Ele começou a rir. Admito que riu metade por causa da felicidade e um pouco pela tristeza daquela cena. Ela era gordinha, pequena e totalmente patética. Ele era extremamente desajeitado, tinha pele marcada pelo sol e fazia anos que não se cuidava direito. Ele era rude, enquanto ela poderia ser considerada a pessoa mais organizada e limpa daquela praça. Era uma dupla esquisita para começo de conversa. Um tinha talento para música, enquanto a mulher tinha um talento natural para planos de contenção. Tão somente isso.

Um dia sem ele perceber, ela tinha ficado horas observando sua música na praça. Havia sido ignorado a manhã inteira. Começou a ter um choro amargo escorrendo pelos seus olhos. Ele começou a gritar, como um profeta do futuro, sobre a vida:

Posso falar? Vocês deixam eu falar uma coisa politicamente incorreta? Tem aviões por aí derrubando prédios, tem guerras aí bombando em tudo quando é lugar! Tudo isso me deprime. Sim. Mas também tem filha da puta dentro de mim que tá curtindo essa porra toda. Dia a dia sem graça, sem nada emocionante acontecendo, porque no nosso futuro eu não vejo nenhum fio de esperança. Caramba para vocês é parabéns, tão se formando no mundo para ser gente trabalhadora. Mas eu!!! Eu não vou virar um desses adultos que se contentam com tão pouco! Mas mesmo que essa felicidade morna se arraste por todos os tempos.Preciso de mais tempo até encontrar minha própria resposta. É esse caminho que eu vou seguir. Mesmo que a jornada seja dura e me leve pros confins do mundo.

Ela começou a chorar também. Resolveu que ele merecia um abraço. Tinha algo de extremamente idiota naquela cena. O homem afastou-a com seu longo braço forte. Ele não era muito carinhoso. Sentia muita raiva do mundo.

Plano de contenção:

1. Abrace os pais quando eles ficarem tristes

Logo:

2. Abrace o mendigo quando ele ficar triste. Parecia correto.

Não digo que eles se amavam. Nem ouso afirmar que o mendigo gostava completamente dela. No entanto, havia algo tragicômico no relacionamento entre os dois. Podia-se dizer que um completava o outro. Segundo a teoria de Alcibíades, os homens haviam sido divididos em dois; buscaram o poder e, em resposta, os deuses simplesmente os tornaram incompletos e fracos. Para isso, um ser humano tinha que virar dois. A total fraqueza e incompletude da humanidade. Porque não três, quatro, cinco? Quem diz que os deuses dividiram os humanos em somente dois? Se eles realmente queriam acabar com a arrogância humana, vai ver era perfeito dividir em milhões de pedaços um ser humano pela mão de um raio.

A maioria das pessoas faz uma leitura romântica de tal mito. Não parece muito correto. Não tem nada a ver com romantismo. Tem a ver com a ideia tola de que todos nós fazemos parte de um quebra-cabeça incompleto que pode muito bem nunca chegar a se completar. É a incompletude que fascina o mundo e não o oposto. Ninguém nasceu pronto. Estamos aqui para errar. De novo, e repetidamente. Errar espetacularmente. Todas às vezes. O time da razão andou perdendo faz muitos anos; nós sabemos muito bem por que.  Faz anos que eles buscam um plano de contenção para a sociedade inteira. Se para uma pessoa sozinha já é um absurdo, imagine para milhões de pessoas. Vão conter outra pessoa, por favor.

Um dia. Ela estava na praça bebendo água no bebedouro. O mendigo finalmente escreveu suas primeiras palavras em mais de vinte anos. Não se enganem, por trás daquele homem havia um escritor há muito tempo perdido. Fazia anos que ele havia tido um bloqueio. Nunca mais conseguiu escrever nenhuma palavra. As palavras não fazem sentido; façamos música. Seus amigos, familiares e namorada o largaram assim que ele não conseguiu mais escrever. Entrou em pane. A mulher ridicularmente patética o tirou daquele estado; finalmente ele conseguiu escrever em duas páginas surradas tudo que ele não conseguia expressar em muito tempo. Como ele se sentia. Saiu correndo até ela com duas páginas amassadas na mão e disse: por favor, leia. Eu preciso que você entenda. Ela sorriu. Começou a ler as duas folhas de papel:

A torneira começa a pingar água. Lentamente, o bebedouro está quebrado. Sua vida esvai enquanto gota-a-gota, sua garrafa vai se enchendo. Uma ótima metáfora para a sua vida. De pouco a pouco, você vai morrendo. O tempo está passando, e você não faz ideia como você foi parar ali. A água escorre, e você pensa consigo mesmo sobre todas as oportunidades perdidas e as coisas não ditas. Reter tudo que você quis dizer. A lógica das pessoas. Adorável castelo de cartas construído a partir de suas abstrações. Você, o rei da lógica e coerência, saberia o que é isso.

Volto no passado. Volto a uma memória que não é minha, mas que consegue explicar quem eu sou.  Quando eu tinha sentimentos. Não. Minha teoria não pode ter sentimentos. O problema do dicionário é que ele está contaminado com termos sentimentais. As coisas não são uma coisa ou outra pela intenção, e sim pela consequência do que foi feito. Isso. Culpo vocês por tudo que aconteceu. Calma. Eu preciso traçar a lógica até tal lugar. Confuso. Tudo bem. Deixem-me pensar.

Fui aceito em Cambridge, quando tinha apenas doze anos de idade. Sabia ler em várias línguas. Comecei meus escritos me revoltando contra o maior teórico da minha época. Passava o dia inteiro lendo. Eu raramente comia ou bebia água. Eu queria salvar o mundo inteiro. Sou um homem com uma missão. Preciso mudar as coisas como estão, ou estamos perdidos. A indústria cresce e as pessoas morrem como moscas na minha janela. A maioria das pessoas não se importa, mas eu devo me importar. Nasci com uma inteligência por um motivo. Tudo bem.

Preciso convencer as pessoas a serem melhores, mas elas são egoístas. Tudo bem, todos são egoístas. Buscam prazer e dor. Isso pode ser generalizado sem nenhuma perda, afinal estamos querendo salvar o mundo. Crio um sistema em que todas as pessoas tem que trabalhar sendo observadas; as instruções vão demorar menos tempo e o rendimento será maior. O público pode inspecionar quem está inspecionando os trabalhos. É um ciclo sem fim de pessoas observando pessoas. Vocês não sabem disso, mas eu inventei 1984 antes mesmo de 1900. Espero que vocês estejam acompanhando.

Amei uma mulher minha vida inteira. Passei cinco anos da minha vida cortejando seu amor. Ela me disse quando lhe pedi em casamento que meu tempo era precioso demais. Gênios não deveriam perder tempo com mulheres: enfraquece o homem forte. Admito que fiquei abatido com tal noticia. Provavelmente me soa como uma desculpa esfarrapada, mas com o custo de prazer e dor, como isso faz sentido? Como explicar a minha dor a partir de tais termos? Tudo bem, seria um prazer, e foi uma dor, está explicado. Continuei a lutar pelos meus princípios contra todos. Sobrevivi à revolução francesa. Pedi que eles me ajudassem com meu projeto de observação e, automaticamente, maior eficiência de todos. Eles aceitaram até o próximo governo ceder. Naqueles tempos, os governos mudavam muito. Bem. Voltando a quem eu sou. Eu preciso de ajuda. Fico trancado lendo o dia inteiro, fazendo meus trabalhos, mas ninguém os lê.

Conheci um jovem promissor que me ajuda com publicações. Mesmo com a origem pobre, ele tem uma admiração grande pelo meu trabalho e uma habilidade social sem precedentes. Afetado pelas recusas da nobreza, agora defendo a democracia. Duro demais dizer isso, eu sei, mas eu nunca fui simpático às mudanças. Meu principio de utilidade diz que o governo força todos a terem a maior felicidade possível. De novo, eu previ várias coisas que iriam acontecer. Vocês que não prestarão atenção.

Tudo bem. Onde eu estava? Rejeitado pela mulher, ignorado pela nobreza e ajudado por um amigo. Tudo bem. Nós fizemos história. Mudamos o mundo. Seja para melhor ou pior, não entendo a coerência histórica. Foi um anti-histórico da data de vocês que disse: a história é um teatro de mascaras. Sem nenhum tipo de revelação. Que homem estranho. Parece até ter esquecido a razão. Tempo maluco o de vocês.

A jovem bebendo água do bebedor. Parece desesperada. Lê todos os dias. Parece enlouquecer. Não encontrou a razão. Entre o meu tempo e o de vocês, isso sumiu. Quanta gente desesperada. Parece que ela também se pergunta sobre as pessoas. Principio de dor e prazer; sendo egoístas; porque aquelas pessoas foram idiotas. Buscando mais prazer. Fugindo de mais dor. Foi isso. Basicamente isso.

Espera por um momento. Ela quer pensar algum tipo de alternativa. Parece que ela não sabe que nos vencemos. Nós conseguimos inventar vocês. Não precisa se preocupar. Foi acaso. Não era um plano. A história é um tropeço atrás do outro. Ele está procurando esses rastros, mas parece perdido em si mesmo. Malditas mulheres. Enfraquecendo homens desde o século dezoito. Tudo bem. Ele começa a olhar a água caindo e se desespera. Vazio existencial sempre tivemos. Não é da sua época. Não fique caçoando de mim. Você está tão perdido quanto eu, e ainda não acredita no principio observador do mundo inteiro da razão.

A água escorre enquanto os tempos se unem em uma perspectiva difusa e doente. O homem vê a água descendo como a areia do tempo através do século sem nenhuma coerência especifica. Seu olhar se alinha ao desespero do andar num corredor de homens perdidos. Começa a pensar numa conversa com o autor que lê. Poderiam ter se entendido se isso fosse possível. Ter tentando descrever as pessoas. São simples. Egoístas. Era isso que ele tentava não provar, mas já desconfiando da sua premissa. Pessoas não são egoístas.

Ela sorriu bastante, enquanto lia aquele papel. Tudo bem, o homem gostava dela.  Não romanticamente, mas gostava. Bastante. Ela começou a caçoar:

-Você escreve também. Impressionante.

-Escrevo. Ou melhor, escrevia. Eu parei.

-Porque você parou?

-Quanto mais penso nisso, mais chego à conclusão que é porque as pessoas gostavam do prestigio e não dos meus textos. Gostavam da fama, e não de mim.

-Eu gosto de você.

-Para de ser tão clichê, mulher.

-Mulher?

-É. Tem algum problema?

-Não. Esse homem que você escreveu, era inglês?

-Sim. Desculpa, sou um filosofo francês do século dezessete.

-Não podemos mais ser amigos, é isso que você está dizendo?

-Lógico. Lógico que não.

O problema de pessoas patéticas é que elas se apaixonam por quaisquer pessoas que lhes dê atenção. A pequena mulher patética não era exceção. O amor invadiu o coração daquela pobre mulher. O pânico passou a tomar conta de novo. Escutou o barulho do seu marido fazendo sexo com a sua amante na garagem. O filósofo desesperado tentando se entender. O escritor perdido num músico vestido de mendigo. Por favor, somente dessa vez, ela gostaria de receber um sim invés do não costumeiro que povoava seus dias.

Plano de contenção do amor:

1. Ignorar.
2. Surtar.
3. Reprimir.
4. Chorar.
5. Declarar.
6. Beijar.

Ela foi declarar seu amor em plena praça municipal. Que falta de decoro. A mulher organizada vestida com um pequeno termo se arrumou para esse momento: vestiu-se com a melhor roupa, colocou perfume, cortou o cabelo e se povoou de imaginários românticos. O problema, como eu disse anteriormente, é que as pessoas confundem o mito em que as pessoas foram divididas em vários pedaços. Não foram dois pedaços, mas milhões de conjuntos espalhados por todo globo. A incompletude. Ela sorriu, enquanto se aproximou do imenso escritor. Quis beijá-lo como se sua vida dependesse disso. A tragicomédia voltou. A pequenina mulher tentando beijar seu imenso homem. Ele se assustou, e a empurrou com excessiva violência. Diga-se de passagem, desnecessária violência.

Os dois se separaram automaticamente. Sem divisão de bens. Sem troca de palavras. Ela foi jogada no chão e ele saiu correndo. Correndo de si mesmo e da sua vida inteira de rejeições; ela fazia o mesmo. Talvez eles fossem perfeitos um para o outro, se não fosse toda a ironia envolvida no encontro dos dois. Talvez.

O mundo já morreu seco de possibilidades que nunca aconteceram. No dia seguinte, ela andou até ele sorrindo. De novo. Entregou um papel, em que se encontrava tal singela mensagem molhada do choro mais doloroso e humilde que uma pessoa era capaz de produzir:

Olha. Olha. Olha. Estou tão indignada que não consigo nem ao menos dizer isso com a minha voz. Toda vez que eu tento falar, fica empacado na minha garganta. Já tentei milhões de vezes falar tudo no espelho, mas seca minha coragem. Preciso escrever o que sinto. Desculpa. Eu entendo. Não sou bonita. Sou patética. Você não gosta de mim. Era um grande escritor renomado. O que iria querer com uma moça tão gordinha e pequena como eu?

Bem, te digo isso. Eu tenho direito de errar, e tentar te beijar. Sabe o que você sempre fala sobre sermos partes divididas dos seres humanos separados pelos deuses? Eu sinto que você é uma dessas partes, de quando eu fui separada desses milhões de pessoas. A parte mais próxima. Entende. Quebra-cabeça. Não sei me explicar direito.

Tudo que falo soa idiota e extremamente patético. Eu acordei hoje de manhã feliz, porque descobri uma coisa muito importante. Eu tenho direito de errar. Não planejar minha vida inteira a cada segundo e momento. Tenho direito de ser empurrada por você, enquanto tento te beijar, porque eu estou viva. Entende. Eu tenho direito a não ter planos de contenção a cada momento.

Queria que você voltasse a me dar aulas. Por favor. Prometo que consigo superar as coisas. Preciso que você me ensine a não calcular o mundo. Entende? Você enrolou aquele papel e deu na minha mão. Agora faço o mesmo. Espero que esteja sorrindo, quando eu entregar esse papel molhado de choro. Por favor.

Ele sorriu como havia de ser. A ironia daquele momento foi tomada de um simples otimismo. Infelizmente, a vida é uma peça de peripécias; Alerquim tinha que chegar ao momento do encontro. Antes disso, um belo carnaval de cores e sons havia de tomar conta daquela praça. Prova final de aula de violão. Tocar cordas de forma forte e pulsante. Conferido. O ritmo da mulher estava totalmente errado. Fora de tempo. Ela não é uma música. Mentira, eu não posso caluniar tal momento. Era sim uma música excepcionalmente estranha; com uma harmonia bizarra. Era triste, fora de tom, fora de tempo e completamente patética. No fundo do coração dele, o escritor pensava consigo mesmo que aquela era provavelmente a música mais bonita que ele já teve o orgulho de acompanhar. Ele, finalmente, entendeu. Partes do mesmo quebra-cabeça. Rastros de uma solidão infinita. Naquele momento, eles foram tomados por uma bela sensação.

O ex-marido da bela patética mulher apareceu na praça. Sem nossos olhos generosos, tudo que ele viu foi sua companheira de anos enlouquecendo do lado de um mendigo mal vestido. As reduções que somos feitos nos assombram. O homem precisa traçar o rastro da sua mulher patética, no momento em que ela estava prestes a atingir o ápice da música. Seu marido tinha sido um ótimo músico na juventude. Ele retirou o violão das mãos da pobre mulher, e a empurrou no chão. Da mesma forma, que o próprio escritor tinha feito anteriormente.

Finais felizes são complicados. Não se sabe até que ponto é possível realmente que algum dia qualquer um de nós tenha um final feliz.  O escritor começou a pensar naquela mulher, e o amor imenso que sentia por ela. Não era algo romântico; total. Parecia algo de natureza diversa; era tão insignificante, mas, ao mesmo tempo, significava muito. Ele sabia disso. Quando ele andou na direção do ex-marido da mulher patética, ele teve algumas idéias na sua mente: o filósofo que quis calcular a alma das pessoas, a declaração de amor daquela mulher, os papeis amassados entregados com gosto de choro e, finalmente, o plano de contenção.
Ele tinha aprendido com a sua amiga, o melhor plano de contenção possível. Um soco tão forte que o homem não conseguiu se levantar por momentos. O sorriso indeciso da mulher que sabia que naquele soco se encontrava tudo que um significava para o outro. Um final feliz digno de qualquer plano de contenção bem sucedido.

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