Náufrago.


Estou me afogando. Não consigo me lembrar de exatamente quanto tempo; mas tenho a certeza que estou prestes a afundar. As placas vermelhas lembram o perigo de um mar irascível. Meu amigo sumiu, não conseguia mais levantar. Depois de um momento, vi que ele andava para a praia. Somente restava eu naquele lugar. Respira fundo. Conta até dez. Tenta mergulhar no fundo; não existe fundo numa onda que seja excessivamente grande. Cuidado. Lembre-se da última vez que esteve vivo. Fazia um ou dois anos. Não consigo contar direito o tempo com o ar sendo tirado do meu corpo; no entanto, eu lembro. Várias imagens invadem minha mente ao mesmo tempo; não consigo definir qual é real; lembro-me da sensação exata que foi pensar que meu último ano não havia acontecido nada. Nenhuma coisa. Nada. Os eventos eram uma série de fotografias mal posicionadas. Porta-retratos deslocados. Calma. Onde eu estava mesmo. O amor é ver alguém morrer. Morrer é ver alguém amar.
            
Não consigo lembrar exatamente onde era aquele lugar. Parecia um hotel. Cheirava a casa, mas não era a minha. Entendam bem, não estou reciclando imagens; estou lembrando uma imagem. Por um segundo, meu ano todo coube num momento pequeno.  O silêncio era imenso, só se ouvia o barulho da água caindo lentamente fora daquele lugar. Calmamente, uma gota por gota, invadindo sua consciência. O coração bate. Infarto. Doença. Cólera. Não sei exatamente o que está acontecendo. Estou andando ao redor do mesmo lugar. Uma volta, duas voltas e ao infinito e além. Alguém sorri. Tenho certeza que o sorriso vem de alguém que eu conheço; sinto a descrição dos seus olhos sobre a cama. Sinto a forma no colchão que está sobre a minha pele, mas, ainda assim, não consigo escutar ou ver o que está acontecendo.
           
Fecha os olhos. Anda numa rua desconhecida com os olhos fechados. Abra os olhos e perceba que o sol bate no seu rosto. Lembre-se de um ritual idiota para tolerar os dias, as ressacas e as coisas não ditas. Abra os olhos. Amor era um negócio assim. Anda de olhos fechados por muito tempo, até que em um momento o sol bate. Você sente por um segundo o raio de luz invadindo o canto do seu olho, enquanto o breu que cobria seus olhos diminuiu um pouco; volte a fechar os olhos, repita o processo ad eternum. Existe um intervalo genial que se estabelece entre o momento que o sol começa entrar e que o breu invade. Um segundo. Conta rápido. O ar está acabando.
            
Estou preso no intervalo entre duas imensas ondas, e eu sei que estou prestes a ceder. A onda é extremamente violenta e simbólica, mas mesmo assim, não se engane sobre sua veracidade. Se você algum dia sair dali, você será outra pessoa. Escuto o som de gritos, vejo que tenho que lutar. Não entendo direito o ponto, mas nado. Nado sem parar. Última imagem, eu prometo.
            
Estou andando em voltas da mesma rua. Freud disse que em Viena, ele se pegou voltando ao lugar de inicio da sua caminhada toda vez. Nós repetimos aquilo que não queremos.  Estou dando uma volta na rua da minha vida. Estou acompanhado. Tento abraçar a pessoa ao meu lado, enquanto percebo que ela não tenta fazer a mesma coisa. Percebo que, cada vez mais, eu vejo o padrão de acontecimentos se repetindo. Quero pegar na sua mão. Sim, me perdoem o clichê. Só mais dessa vez. Entendo o absurdo. Não precisam me explicar. Consenso social. Complô das indústrias de chocolate. Compreendo. Concordo.  Beach boys está tocando no som. Escuto a letra. Posso não te amar sempre, mas enquanto as estrelas estão no céu, você não precisa duvidar. A frase faz sentido, ninguém ama ninguém toda hora; todo momento. A dúvida é o elemento mais cruel. Você tira o pior problema de todos; não precisa duvidar. Dou a volta para a mesma rua. Olho no bar, a cerveja enquanto cai. Você está ali de novo. Prometi que era a última imagem. Você está do meu lado, e eu me sinto bem. Entendo que isso não vá acontecer tão cedo fora da minha imaginação, mas eu tenho certeza que aconteceu. Eu sei. Eu quis te abraçar. Comecei a me perguntar por que não estamos nos beijando. Mais uma volta. Eu sei. Só mais uma volta para o exato mesmo lugar. Ela ainda está aqui.
            
Saio do redemoinho. Nado de volta pra praia. Uma onda do mar me leva. Não sei o que aconteceu. Espero que alguém me diga um dia se eu realmente consegui abrir os olhos ou foi somente imaginação.

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