Extremamente bobo, incrivelmente patético.
Patético. Era essa a palavra que
qualquer um usaria para definir aquele pequeno velho sentado na praça da
cidade. O olhar triste de quem não fazia nada o dia inteiro. Mal sabiam que ele
já tentou ser um ser humano ativo; alguém vivo. Infelizmente, sua mente havia
sido quebrada há muito tempo atrás. Sentava no banco da praça para observar uma
mulher vinte anos mais nova passando na sua frente. Lógico que ele era patético.
Estava na sua expressão. Uma marca definida pela sociedade sobre quem ele era.
Sua falta de capacidade de mudar qualquer coisa ao seu redor. A vontade de
ficar a vida inteira no mesmo lugar sem nunca se mover.
No começo do cristianismo, a
confissão era uma marca carregada como reconhecimento do pecado. A falta de
comida e de privilégios era dada ao padre que optava por reter aquela marca. Respeito
dos outros era o que eles buscavam ao passar por todo tipo de tortura corporal
e mental. O velho naquele banco pensou que ele tinha exatamente um tipo de
marca. Algo que nunca foi tirado ao longo dos seus anos. Não sabia se ele tinha
optado pela marca. Primeiro, ele começou a beber como forma de tirar todas suas
marcas. No entanto, a marca ficava mais forte porque agora ele se enxergava a
partir das definições alheias. Havia passado anos isolado do mundo inteiro na
sua própria mente. A marca poderia ser uma criação sua ou da sociedade, tais
termos já não faziam diferença. Sentado no banco da praça ele era a decadência
de todo um ideal de sociedade. Estava bêbado. De novo.
Lembrou-se de uma discussão da sua juventude:
-Você
é um babaca.-Ela disse.
-Eu
te chamei para beber. Não quis te matar.
-Mas
você gosta de mim.
-Lógico.
Gosto muito.
-Você
não deveria fazer isso.
-Você
está me culpando por gostar de você?
-Estou.
Você não tem esse direito. Acabei de passar por momentos difíceis.
-Mas...
-Você
é como cada homem que me aparece na minha vida inteira.
-Não
sou.
-Você
é um babaca.
-Não
sou.
Bate a cabeça contra a parede.
Repetidas vezes. Opta por bater até sua mente ter alguma coerência. A prova
viva que ele não era igual a todos os homens era sua falta de jeito sistemática
ao lidar com mulheres. Se houvesse olimpíadas de quem não saberia falar com
mulheres bonitas, ele com certeza ganharia todos os anos de lavada. Babaca. Das várias marcas que o mundo havia
lhe dado, essa era extremamente nova. Mulheres que culpam homens por gostarem
delas. É como se não bastasse rejeição, você tem que completar falando que ele
não direito a tal sentimento. O psiquiatra começa a falar repetidas vezes:
-O
problema é que você tem vergonha dos seus próprios sentimentos.
-Lógico
que tenho. Porque não teria?
-Você
não deveria ter.
-Você
está brincando, certo? As pessoas vivem pedindo para nós termos vergonhas dos
nossos próprios sentimentos. Eu me adianto e logo não tenho nenhum. Não me
culpe por seguir os consensos.
-Ninguém
racionaliza isso tudo.
-Malditos
preguiçosos. Eu tenho direito de racionalizar.
-Não
tem.
-Pedem
para que eu não tenha sentimentos e que eu tenha vergonha deles. Elimino todos.
Acabo me isolando socialmente.
-Você
pode se tornar facilmente um psicopata.
-Tudo
bem. Aceito o risco.
-Você
nunca conseguiria. Você sente afeto.
-Eco.
De novo, repetição aleatória de
cenas sem propósitos. O velho espera na frente de uma galeria de arte. Seus
olhos estão tristonhos, alguém deveria vir para sonhar seus sonhos enfim. A
mulher vinte anos mais nova estava beijando alguém. O velho vestido com roupas
de mendigo na chuva estava olhando fixamente para os dois. Uma garrafa de
uísque na mão. O choro invadindo seus olhos. Você não tem direito de ter
sentimentos. Os racionalistas do século dezoito tinham muita raiva dos
sentimentos; não podemos criar uma sociedade por sentimentos. Não sejam
absurdos. Tenham paciência. O mundo se forma com cálculos. Os seres humanos são
números. Conte às pessoas que passam ao seu redor, cada um equivale a um
acumulo de felicidade ou tristeza. Simples. A sociedade funciona assim. Nós
somos assim. Não fale que você gosta de mim. Você não tem direito. Vamos
esquecer tudo isso. Tudo bem. Não sou babaca. Somente sou patético.
Extremamente patético.
A mulher sai do restaurante e olha
fundo nos olhos daquele pobre mendigo:
-Eu
disse para você não aparecer.
-Mas
você sabe.
-Eu
sei. Eu li sua biografia. Assim que sua filha soube quem você é. Vinte anos na
porcaria de uma cabana.
-Mas
filha.
-Sem
mais. Não fale comigo. Vá embora. Aprendi sua vida em livros de outras pessoas.
-Eu
me arrependo. Eu queria te ver. Juro. Eu pensei em você. Dedico todos meus
livros pensando no seu rosto. Por favor. Não vá embora.
-Você
não parou de beber!
-Por
favor, me deixe. É besteira. Só para limpar as marcas.
-Não,
pai. Você não pode voltar. Esqueça.
Ele saiu andando. Um pequeno garoto
saiu correndo. Começou a falar alto:
-Oi.
-Oi.
-Você
é meu avô?
-Sou.
-Você
que escreveu a história dos guerreiros do céu?
-Sim.
Você gostou?
-Gosto
especialmente quando eles matam o monstro.
-Minha
parte favorita também.
-Ele
era bobo.
-O
que?
-Extremamente
bobo. Pessoas não são números.
-Não.
Não são.
-Obrigado,
vovô.
Uma fita narrando tais
acontecimentos foi encontrada numa cabana isolada de contato com qualquer tipo
de humano. Evidências estão sendo buscadas sobre a veracidade de tais
acontecimentos e a existência de familiares. Livros estão espalhados por toda a
casa. Ninguém além desse homem passa por esse trecho da floresta há anos.
Parede pintada de alucinações. Num post-it amarelo se encontra uma inscrição: a
felicidade só existe se compartilhada. Em outro, destacado em amarelo: se a
felicidade e os homens não forem feitos de números.
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