Esquecimento.
Ela não tem direito de afirmar o que
está dizendo nesse momento, sim, ela diz, eu tenho. Não tem. Você não tem
direito. Não chegue mais perto; não se aproxime. Eu sou casada com você. Não é.
Você foi embora. Largue minha mão. Enfermeira, por favor, tire essa mulher
daqui. Eu te amo. Não ama. Vou embora. Vá embora.
As pessoas não deveriam fazer
promessas que elas não fossem cumprir. As emoções tomam contam do que somos; o
ar que nos respiramos é mais intenso, nos corroemos por dentro. Prometemos o
mar, o céu e toda a beleza do mundo. Mentimos sobre nossas incapacidades e
defeitos. Inventamos desculpas, refazemos personalidades e afirmamos perfeição.
Absurdo. O homem deitado na maca do hospital não lembrava mais do seu nome, mas
ele tinha certeza que ela havia quebrado uma promessa. Não conseguia mais se
lembrar da promessa, mas conseguia, com certeza, relembrar que ela a havia
quebrado.
Ele
lembrava principalmente da sensação: o problema não era ser enganado. A vida
poderia ser muito bem um palco com atores mal ensaiados. Não conseguia
acreditar nem ao menos no roteiro. Não sabia se o escritor realmente se
importava.
Ela
disse categoricamente que isso não importava. Disse que o amava. Disse, sem
parar, que nunca o esqueceria e gostava mais dele do que a vida inteira.
Talvez, no momento em que ela tenha dito, tais palavras tivessem significado.
Mal ela sabia que os significados mudavam e, que, as ramificações das palavras
ditas poderiam se espalhar como os ramos das mais profundas raízes de uma
árvore. Lentamente, tomando conta da imaginação alheia; parte por parte de uma
vida sendo reescrita a partir de palavras sem consistência. As pessoas deveriam
ter cuidado ao contar promessas, pois elas trazem todo o tipo de conseqüência
não esperada. As promessas duram uma vida inteira, enquanto as emoções morrem
no instante em que são pronunciadas.
O
adolescente estava sentado na sala de um imenso apartamento. Orquídeas enchiam
a sala de vida e energia. A menina com belos olhos claros começou a perguntar
sobre a vida do adolescente. A avó e tia estavam presentes para compactuar com
aquele menino. Seu romance só seria aprovado depois que a família abrisse o
sorriso. O garoto sorriu; havia esperado aquele momento por setecentos e trinta
dias. Ele queria fazer parte da história de amor daquela família.
A
avó havia por muito tempo insistido no avô, apesar de que sua irmã estava há
muito tempo comprometida com aquele homem. Mesmo assim, as cartas da irmã mais
nova para o futuro marido haviam desaparecido; a irmã mais velha teria seu amor
eterno. Milhões de cartas escritas na mais incrível inocência, enquanto as
cartas da sua irmã haviam sumido por a sua mão. O avô, agora, endereçava todo
seu amor aquela mulher que lhe correspondia; o amor era fácil, ele era, tão
somente, a correspondência de cartas imaginárias.
A
avó depois que o avô morreu, continua a escrever cartas românticas a seu
marido. Hoje, eu acordei. Pensei em você o dia inteiro; não consigo entender
porque você não veio me abraçar de manhã. Não consigo compreender porque você
faltou o almoço. Fiz sua comida favorita. Eu te amo.
Todo
dia, ela contava a mesma história. O amor era fabricado, porém não poderia ter
mais significado. Afinal, ela havia, com todo o cuidado, transformado tais
tecidos de mentira no mais extremo convívio. Com sua coragem, ela havia feito
da mentira, a mais bela verdade. Os sonhos que criamos são nossas verdades; são
nossas comprovações que existimos. Ela relatava seu dia-a-dia com todo o amor
do coração, pois ela havia escolhido sua sina. Poucos de nós poderíamos dizer o
mesmo acerca das nossas vidas. O adolescente sentia-se bem ao encarar o papel
do homem da família.
Infelizmente,
nosso pobre herói não era o homem que todos esperavam. Sim, espero ter
dinheiro. Sim, espero fazer sua neta feliz. Eu a amo. Ela não te ama de volta.
Elas não queriam dizer isso, mas elas sabiam. Ele não sabia. Tremia de medo com
os olhares que ele havia recebido. O mal havia sido feito, e seu amor não teria
nenhum propósito, mas ela tinha prometido. Todos nós fazemos promessas que não
podemos cumprir.
As
memórias parecem confusas. Um autor argentino passou sua carreira buscando a
imortalidade: o ponto infinito em que tudo fosse resumido. O Minotauro havia
ficado feliz quando foi morto pelas mãos do herói, porque ele estava preso no
mais terrível dos labirintos. Um ponto em que toda a humanidade pudesse ser
vista; uma biblioteca onde todos os livros já escritos iam para morrer; o
verdadeiro labirinto. Ele substituiu a vida pelo infinito, a incerteza pela
humanidade e seu medo particular pelo universal. Nunca cumpriu seu sonho de ver
tudo acontecendo. Ele nunca viu todas as consciências se unindo, assim como
nunca havia visto o Minotauro se matando frente ao seu herói.
Devemos
respeitar tal homem; ele sabia que a memória era finita. O tempo era silenciosamente
cruel. Ele acordava todo noite se vendo preso na maior biblioteca do seu país.
Acordava, suado, tentando fugir da sala onde estava preso. Assim como Freud
preso nas mesmas Ruas de Viena, nosso pobre autor estava preso na mesma sala. O
quarto do conhecimento eterno infinito. O pesadelo de estar preso num cômodo que
se repete em todos os passos.
O
adolescente e o velho se unem na mesma consciência. Sentem-se conectados pelo
semelhante sentimento ambíguo de resignação. O olhar cabisbaixo une suas duas
mentes numa sinfonia de sons deslocados.
Ambos
se resignam com o som vindo do quarto. Vagarosamente, seus tímpanos explodem. A
cama começa a se mover; os gemidos aumentam. O choro de acumula. O barulho é
ensurdecedor. Ela geme. Sem parar. Gritando alto. Pedindo ajuda a uma
divindade. Se entregando violentamente contra o corpo do homem desconhecido.
Arranhados se dilaceram em seu corpo. Mordidas. Sangue. O gemido vai abaixando
devagar. O homem fica no corredor. Ele morre. Ele sabe que está morto. Não
resta mais nada. Não, você não me ama. Não, você vá embora. Deixe-me morrer em
paz. Ela não me ama. Eu sei. Nós sabemos. Acalme-se. Você não precisa ir
embora. Eu vou embora. Eu estou morto
A
psicologia há muito tempo sabe que escondemos certas lembranças, por causa dos
traumas que nos levam a pensar. Nós nunca esquecemos, simplesmente aceitamos
que aquilo não existe. O homem ao ouvir o som da sua namorada de longa data
percebeu que havia morrido. Em um instante, sua vida passou frente aos seus
olhos. Ele haveria de repetir o mesmo processo que vivenciou ali com dezenas de
mulheres, porém ele nunca esqueceria o som do ruído diminuindo relutantemente
enquanto os corpos se chocavam. Não importava quanto sexo ele teria na sua
vida. Nada daquele jeito. Não importa quantas namoradas alheias e noivas ele
tivesse ao seu redor. Ele não conseguiria superar seu trauma.
Não importava quantas vezes ele fosse capaz de
recriar o processo, ainda assim havia algo especial sobre seu primeiro trauma.
A traição, em si, não perturbava. Nunca foi um moralista. Havia sido traído
anteriormente. Foi à intensidade da traição. A vontade de danificar. Sua
consciência havia precisado se destruir para continuar vivendo. Foi à intenção
que lhe machucava. As intenções são capazes de matar um homem, se utilizadas da
forma correta.
O
adolescente sentava num banco de madeira. O bar estava vazio. Seus amigos
acompanhavam a letra da música. A menina que tinha dado vazão aquela imaginação
estava em algum lugar sem lembrar-se do seu nome. Enquanto os acordes eram
arranhados rapidamente, seu pensamento divagava. O poeta, músico e escritor do
silêncio. Ninguém escuta suas músicas. A única pessoa que poderia entender
aquela melodia estava em alguma ilha distante procurando algum significado.
Seu
nome haveria de ser uma marca distinta de uma realidade alternativa para aquela
mulher. Nas suas músicas, os acordes deslocados se moviam no seu coração. Eu
canto mal, eu sei. Deixem-me fazer barulho. Calem-se. Ela não está escutando.
Em algum lugar, o som vai ressoar até atingir seu rosto. Permitam-me a
demonstração. Seu rosto se desmancha com o som deslocado. São meus sonhos que
estão presos entre os refrões. Você não tem direito de escutá-los. Só mais um
acorde, não me expulsem. Não sei o que significa melodia. É o som que sai da
sua bile negra vomitada depois da pior ressaca da sua vida. Ele pegou seu pobre
violão e se perguntou se o som atingiu seu rosto; se seu silêncio havia
invadido sua vida. No entanto, ele já sabia a resposta para a sua pergunta. Seu
nome era um risco na areia de um tempo alheio que nunca o relembrou por um
segundo sequer.
Sísifo
encravizou Tanatos; ele quis parar a morte.
Colocou um colar para conter a morte. Enganou seu assassino. Fugiu do
mundo dos mortos. Morreu de velhice a despeito do ódio dos deuses. Quando
chegou finalmente ao mundo dos mortos, sua punição era rolar a mesma pedra até
o topo da montanha. Repetidamente. Todos os dias. Simboliza a humanidade
esmagada pelo seu destino; Sísifo escolheu enganar a morte. Foi sua escolha
controlar seu destino. Os deuses só tiveram a ele no último momento. Após sua
longa vida. Ele podia ser esmagado pela pedra repetidas vezes por se renegar
contra os poderes que o controlavam. Contra tudo aquilo que o destruía. Contra
o silêncio dos acordes deslocados que esbofeteia uma mulher que não se lembrava
do seu nome. O velho que renega sua mulher na beira da morte. O marido traído
na beira da escada querendo sua vida de volta. Borges acordando tarde da noite
implorando para não mais sonhar com a sala do infinito. Somos todos o homem
perturbado pela pedra que o esmaga. Somos todos a rebelião contra aquilo que
nos destrói. Somos uma guerra contra o esquecimento. Contra a árvore das
promessas não cumpridas e as músicas nunca ouvidas. Somos uma guerra recorrente
contra a mediocridade do esquecimento.
A
menina olha fundo nos seus olhos. Repete seu nome várias vezes. Você, por aqui.
Estou de férias. Você não parece o mesmo. Você não parece bem. Tudo bem. Não
precisa repetir meu nome, eu me lembro dele. Não precisa repetir que você lembra-se
de mim. Não precisamos mentir. Não temos mais promessas entre nós. As minhas
músicas são para não ser escutadas. Repeti o que eu sinto. Você não vai escutar
a letra que fiz para você. Não, ela é minha. Saia da beira da cama. Eu estou
morrendo. Não fale mais com a enfermeira. Não estou enlouquecendo. Para de
dizer que repito as palavras e memórias. Para de repetir que me ama. Não agüento
mais. Você pergunta como eu me sinto. Eu estou perfeitamente bem. Estou
travando uma guerra contra o esquecimento. Você faz parte do inimigo. Você é o
esquecimento de mim mesmo. A memória da areia. A promessa não cumprida. A
música não escutada. A lembrança que quis vingar, mas se reteve ao escuro da
noite. Estou bem. O esquecimento é doce; Aqueronte nos traz felicidade. Arranho
a corda do violão até o sangue sair. Lembro disso. Estou vivo. Estou em
rebelião. Levanto da cama do hospital. Dou um murro no quarto em que a mulher
geme. Levanto o violão. Abraço meu autor favorito. Desvencilho-me de todos meus
inimigos; eles são meu esquecimento e minha memória. Eu vivi.
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