Infinito.


-Para de me apertar.

-Não é minha culpa. O carro é pequeno.

-Também, qual foi sua ideia de querer ficar aqui apertada comigo?

-É porque eu gosto. De ficar aqui. Com você. Eu gosto muito de você, sabe.

-Eu sei.

-Não sabe.

-Lógico que não sei. Você passa metade do tempo dificultado minha vida. Falando que não gosta de mim. Que nasceu para morrer sozinha. Você é bem complicadinha.

-Fica calado um pouco, vai.
            
Ela começou a beijar ele. Tudo bem, eles estavam em um carro. Tenho que admitir que o romantismo ali não era excessivo a primeira vista. Um carro estacionado numa quadra qualquer, enquanto a chuva torrencial caia pela janela. Dois adolescentes se beijando. Tudo certo. Existe uma descrição aqui que tem que ser feita para que vocês possam acreditar em mim.
            
Existe uma quantidade imensa de dor que retemos ao longo da nossa vida. Ela fica crescendo com a maior quantidade de tempo que vivemos nesse mundo. Afinal, somos a soma de vários dos nossos traumas. Não há muito que possa ser feito sobre isso. Era pelo menos isso que aquele homem pensava. No momento que depois de meses de briga intensa, aquela mulher finalmente optou por beijá-lo, ele pensou o radicalmente oposto. Ele passaria anos se perguntando por que somente aquele beijo e nunca mais, em toda sua vida, o amor seria definido em termos tão singelos. O amor era a fuga da dor; no momento em que ela o aceitou, ele sabia que havia perdido toda a dor acumulada ao redor dos anos nos seus ossos. Era irônico que aquele menino haveria de se tornar o pior de todos os executivos sem coração, afinal ele estava ali dando flores e clichês a uma menina como se não fosse haver amanhã.
           
Ela sabia que não o amava. Diabos, como a menina gostava daquele menino. Gostava, mas não amava. Infelizmente, o menino era um simbolismo de todo o exagero romântico contido nos clichês de romances antigos. A forma de se portar, os olhos vidrados no seu rosto, a própria imagem que lhe era retida; ela não queria ser uma metáfora alheia. Ela queria ser alguém real.

-Quanto tempo nós vamos ficar aqui?- Ela perguntou.

-Tem um livro. De um bom homem. É sobre um homem que espera a mesma mulher por exatamente 55 anos, 3 meses e 4 dias. A moral da história, se é que há uma, é que a espera vale a pena. No final do livro, ambos estão velhos, e se amam num barco descendo o rio. Quando lhe perguntam quanto tempo eles vão ficar naquele barco, o homem responde a resposta ensaiada sua vida inteira: pelo resto da vida.

-O que isso significa?

-Não sei. Você tem que ir embora cedo mesmo?

-Já são seis da manhã.

-Porra, mas esse tempo passou rápido.

-Rápido para cacete.

-Então, te vejo amanhã?

-Pensando bem. Acho que não quero te ver nunca mais.

-Ok, por isso, eu não estava esperando.

-Você sempre acha que sabe demais.

-Você sabe que eu vou te ver de novo, certo?

-Sei.
           
Eles não conversaram mais nenhuma palavra em todo o caminho para casa. Ela o abraçou por todo o caminho; algo extremamente atípico. Nunca mais ele teria aquela mesma sensação de segurança. Algo roubado pela imensidão das experiências humanas que viriam seguir. Ela abraça seus longos ombros, enquanto os quebra-molas passavam. Havia uma figura engraçada naquele quadro: uma mulher abraçando um homem, enquanto lentamente iria dormir. Parecia um carinho quase familiar.
            
Uma cena repetida mil vezes no mesmo cérebro, ainda assim não faz sentido. Se você tenta montar um filme com a realidade, vai descobrir que é um total fracasso. As imagens não se juntam; os atores não ensaiaram; e os roteiristas da peça têm sérios problemas mentais.    
            
Ele se sentava com uma arma no colo, enquanto olhava a foto tirada aquele dia. Antes do enterro. Antes das noticias. Antes de todo o choro amargo escorrendo pelo seu terno. Se ela fosse se matar poderia ter escolhido um dia que não fosse aquele. O dia em que ele havia perdido toda sua dor foi, paradoxalmente, o mesmo dia que ele perdeu toda a sua vida. A arma no colo o tranquilizava um pouco, enquanto o uísque retirava toda sua resistência a ideia  Blasfêmia. Grito de injustiça. Grito de atenção. Quanta baboseira. Deixem o homem com seu pobre uísque e sua pobre alma. Se é que pode ser dito que uma existe. Respira fundo. Pensa em algo alegre. Algo muito alegre.
            
O tempo. Naquele dia. Naquele carro. O tempo seguiu a lógica do grande conquistador romano. O passado não importava. Quem ela foi antes daquele dia e quem ele tinha sido importava muito pouco. Importava nada. O futuro era um nada de especulações inúteis. No segundo, em que os dois existiram juntos, o tempo havia sido infinito. Isso era algo alegre. A arma foi deixada de lado. Recuperou seu fôlego; deitou na cama. Mais um dia, e ele teria de acordar. Nada disso importava. O tempo era infinito. Poderia ser infinito de novo.

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