Azul.

Ela começa a olhar da mesa de bar o que está acontecendo: um homem insistentemente beija uma bela menina enquanto tenta convencê-la de deixá-lo subir em seu apartamento. A menina sorri muito como se tivesse acabado de conquistar seu mais simples sonho. Ela começa a pensar que nunca sentiu tal sentimento: seu mundo inteiro ganhando contornos novos por outra pessoa. Parecia excessivo. Parecia loucura. O homem insistentemente beijava a menina e pedia para subir na sua casa. A menina beijava mais, sorria, porém não cedia sobre seu apartamento.

Não era um problema de moralidade sobre o deixar ele subir; era algo mais. Ela queria prolongar aquela extensão de felicidade inocente pelo maior tempo possível; deixar o mundo desaparecer por aquele singelo momento. A negação era, na verdade, um sim a todo um mundo metafórico de figuras românticas e clichês. A menina sentada no bar se perguntava, profundamente, porque ela nunca teve a capacidade do mesmo. O copo de cerveja secava cada vez mais rápido, enquanto suas ulceras doíam com mais intensidade. Não peçam com que eu pare de beber. A vida já é intolerável como está. Por favor. Deixem para lá.
            
Ela estava dançando. Música era uma das suas coisas favoritas; preferia acordes a pessoas, compassos a sentimentos e sensações a existências. Suas amigas começaram a sorrir e discutir com alguns homens que chegavam para conversar, ela tentava fazer o mesmo. Ela começou a andar, não lembrava exatamente para onde; nem ao menos se alguém a acompanhava. Ela se lembra do cheiro do cigarro e do gosto de sumir de perto daquelas pessoas e das suas próprias amigas. No final da festa faziam a mesma pergunta:


-Pegou alguém?


-Lógico- Essa era a resposta.

            
Lógico. Lógico. Lógico. Da perspectiva puramente analítica não existe nada lógico naquilo. Pessoas se encontram para trocar exatamente por volta de dez ou vinte palavras. Nenhuma realmente sabe nada sobre uma ou outra. Existe um desespero em todo o processo; querer ser reconhecido acima de qualquer subjetividade. São diálogos extremamente vazios. Uma vez, você aguenta  duas, porque você está carente, na terceira, você não enxerga o propósito. Afinal, quem sou eu, para dizer o clichê: as coisas têm que ter significado. Elas não têm, mas mesmo assim aquele lugar não parece um bom lugar. Era lógico que aquela menina sempre mentia. Ela nunca conversava com ninguém; imagine então beijar.

            
O psicanalista diz: você precisa sair de casa, precisa se forçar a ir para algum lugar. Não adianta ficar em casa fazendo as coisas que você gosta; você precisa se esforçar para conhecer outras pessoas. Para de achar que você está certa em tudo. A menina balança a cabeça de forma obediente. Tudo bem, eu me forço, mas o mundo é tão azul. Azul? Os sentimentos são cores- ela reafirma. Ele diz que o desvio de atenção não justifica tal comportamento anti-social; ela não deveria ser assim; não é normal. Os olhos delam perdem um pouco da cor. Tudo é cinza; bizarramente sem cor. Toma esse remédio, as coisas vão melhorar, prometo. Enfia o remédio abaixo da garganta; tudo bem. Eu vou ficar bem. Vai sim.

            
Somos uma civilização inteira de soluções pela metade.  Tudo pode ser solucionado, desde que você esqueça quem você é. Perder a identidade é mais importante do que perder a sanidade; existe um problema de liberdade. Liberdade de ver o mundo a partir de cores. Definições arbitrárias em papéis sem significado. Repita-se a si mesmo os problemas. Leia os critérios. Aplique o remédio. Está tudo bem. Respire. Você se sente melhor?

            
Ela começa a olhar um menino sentado no banco. Ele conta os tempos da música. A perna dele se movimenta no compasso do baixo. Ele se sente imensamente deslocado. Ela senta do lado dele:


-Oi, camiseta bonita da minha banda favorita. - Ele diz.


-Não precisa conversar, sabe.


-Preciso sim, eu vi como você me olhou como se eu tivesse olhos desesperados.


-Mas você tem.


-Só para atrair meninas malucas que fogem de amigas e de homens com diálogos inúteis.


-Você é rápido.


-Eu observo como posso. Diria que seu remédio é para desvio de atenção, bipolaridade e depressão.


-Quase.


-Me deixa pensar, você não se sente bem. Gosta da música, evitaria as pessoas. Precisa se forçar a sair de casa. Muito chorona na verdade.


-Eu não sou chorona.


-É sim. Afinal o mundo não é essa porcaria toda. Eventualmente, ele é bom.


-O que isso quer dizer?


-Que no total caos, existem sorrisos.


-Essa foi à frase mais clichê que já escutei.


-Já fiz melhor.

           
Ele levantou. Olhou bem nos olhos dela:


-Não adianta eu dar meu telefone, porque você não ligaria. Não adianta te beijar, porque você fugiria. Logo, eu vou embora.

            
Ela não entendeu aquela figura engraçada, mas ele tinha certo ritmo. Difícil definir ritmo, era algo mais como se fosse uma cor. Azul marinho forte; cor de um mar calmo depois de várias tempestades metafísicas. Algo mais ou menos assim.

            
Ela procurou obsessivamente por ele. O fato é que ele havia a irritado; prever o comportamento de um ser humano deixa qualquer um completamente maluco. Depois de muito procurar, a menina com camiseta de bandas depressivas em festas barulhentas, achou o menino de olhos desesperados e sorrisos pela metade. O dia do lançamento de um cd produzido por ele. Antes de o show começar, o garoto começou a dizer bem alto:


-Essa música é sobre um homem. Dizendo a uma mulher que ele quer tirar ela do sanatório.

            
Imaginem o silêncio da multidão, enquanto aquela melodia dissonante começava. Era quase um silêncio palpável. Cenário pequeno; show quase vazio; banda minúscula. O som era estranhamente triste; logo após emendaram uma música mais alegre. A letra da música triste era algo, mais ou menos, assim:

Você me prometeu

Que não ia viajar

Não ia fugir desse penar


Você me prometeu

Descanso da vida

Não pedir ajuda ao seu analista


Mas não me esqueça

Eu ainda vou

Te levar daqui


Seu pai me contou do final

Não havia começo

Naquele lugar


Eu ainda sonho com a nossa vida

Um cão e duas crianças

Para encher meu jardim

               
A letra não era o poema mais genial do Drummond, porém havia algo de imensamente sincero ali. A música emendada rápida e feliz parecia uma forma de compensar por aquele começo imensamente triste; era como se a produção dele inteira tivesse naquela singular música. Ela estava sentindo alguma coisa. Era bizarramente estranho ter algo tão feliz em si; ela estava se sentindo mal por se sentir bem. Ela riu, enquanto aquele terno grande demais nele se deslocava. Os dois olhares batiam. O resto pode ser considerado história. Uma história muito triste.

Ele estava indo embora no dia seguinte para o exterior; o show era uma despedida dos seus melhores amigos das músicas daquele pobre moço. Sua mulher havia se matado há alguns anos atrás e ele nunca havia conseguido superar aquela música. Ele, como ela, havia se forçado a sair de casar; a estar em festas. Continuar a viver era um peso imenso. A música tocada havia sido a pedidos do próprio produtor; o sonho dele era essa música tocada num palco. Talvez se a música tivesse mais alta, em algum lugar até os mortos pudessem escutar. Forçar os mortos a escutar músicas era devidamente cruel.

Ele disse como foi um prazer conhecê-la. Ela disse o mesmo. Nunca mais eles se veriam. Porém, por poucos minutos, ambos haviam sentido vontade de viver. O sorriso veio aos poucos, enquanto eles se reconheciam. A verdade é que não existem morais felizes no final de histórias. Uma mensagem para você levar para casa e hipocritamente chamar de sua e, tão somente, sua. Os dois não seriam um casal. Não iriam se casar. Eles não iam se remendar até que ambos estivessem consertados.

No entanto, por uma pouca quantidade de tempo, eles tinham lembranças sobre as quais iam se inspirar para passarem os próximos anos da sua vida. Uma coleção de lembranças e reconhecimentos que trouxessem alegria. O mundo era azul; imensamente daquela cor. Anteriormente, a cor era imposta pelo seu psicanalista; pelas suas amigas. Agora, toda vez, que ela olhava pro mar, ela se lembrava daquela música. Algo fazia sentido. Muito sentido. O azul daquele moço era agora seu próprio azul agora. Uma lembrança na qual se segurar. Um sanatório. Um amor. Uma vida.

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