O poeta do precipício.


O velho sentava a beira do precipício. De novo, outra pessoa iria se matar. Ele havia parado de contar o número de pessoas que se jogava daquele local todos os anos. Passaram a chamar aquele velho pelo nome de poeta do precipício. Ele era quem tentava salvar os sem salvação. Os que já não queriam viver. Ele era o homem do perigo e da tristeza. Ele era só um homem qualquer.

-Você de novo por aqui?-Um jovem se erguia vendo as pedras bateram com as ondas.

-Sempre.

-Sabe. Você não deveria se matar.

-Porque?

-Eu li suas matérias no jornal. Elas são engraçadas.

-Mas não são minhas. Eu quero escrever contos. E beijar mulheres. E viver a vida. Em troca disso, eu só fico deprimido em casa. Querendo acabar com tudo. Venho até esse precipício há anos tentando me matar, e você sempre me atrapalha.

-Você sabe o número de formas de se matar que não envolve um precipício?

-Sim.

-Então porque você volta aqui?

-Porque eu quero viver?

-Bingo. Essa nem custou muito tempo.

-Isso é babaquice. Eu só venho aqui porque quero.

-Bem:

Um jornalista sem coração
Nunca se jogaria no abismo, não
Batatinha quando nasce
Se esparrama pelo chão,
Ou você se mata,
Ou para de reclamar,
Meu irmão.

-Você é o pior poeta que já vi.
            
Anos mais tarde, o jornalista continuava vivo. Ele começou a entrar em forma. Vestir belos ternos. Ele se sentia bem. E ele queria entender o que o velhinho fazia sentado ali numa casa vagabunda perto do precipício. Ele propôs dinheiro e ajuda ao velho, que o respondeu com um riso imenso:


-Filho, você não entende.

-O que?

-Eu estou aqui, porque eu sou aqui.

-Como assim?

-Eu não estou aqui porque eu não tenho lugar para onde ir. Eu sou o homem do socorro no perigo. O homem da tristeza. Eu salvo quem precisa, mas eu sou superado. Você me superou. Você é a felicidade, e esse é um homem que eu não sou. Eu nunca serei o homem da felicidade. Eu sou o poeta do precipício.

-Mas isso é loucura.

-Completamente loucura:

Rosas são vermelhas,
Violetas são azuis,
Ando sob telhas,
Visando a vida,
O precipício sou eu
Ou eu sou o precipício?

-De novo, seus poemas continuam horríveis.

-E quem vai te ajudar?

-Meu filho quem ajuda e salva os outros é padre. E eu não to aqui para falar de religião. Eu não sou salvo por ninguém, porque não é dever de ninguém me salvar. Vocês não entendem. Eu sou o poeta do precipício. Vocês não entendem que sou o filho de quem fez esse lugar? Sou o filho dos homens que cavaram buracos metafísicos. Agora sou obrigado a viver aqui como Sísifo segurando a pedra sobre a montanha.

-Esse foi o maior absurdo que já escutei.

-Pois eu também sou um poeta do absurdo. É meu direito. Um deus diferente me contou que o absurdo é tudo que temos. Levar a vida é sério pode ser muito bem uma piada; levar uma série de acontecimentos aleatórios é se colocar em maus lençóis. Eu ficava muito magoado, filho. Muito. Por tudo e todos. As pessoas que eu gostava eram as piores. Elas eram capazes de me destruir em poucos segundos. Mas filho, eu tive que parar de levar elas com seriedade. Porque elas não são de jeito nenhum sérias. Elas são hipócritas; agem como querem. Ninguém se compromete a ser aquilo que fala, filho. Por isso, me deixe sozinho em casa. Ninguém pediu sua ajuda.

-Não precisa ser grosso. Só quis agradecer.

-Sua vida. Sua felicidade. É meu agradecimento. Só isso. Não quero mais nada do que menos pessoas se jogando desse buraco. É só isso que quero:

Sob o buraco do mar,
Morem milhões de homens,
Descalços de alma,
Eles podem viver,
Sob o olha vigilante do deus,
Poseidon ou santo,
Não importa o nome,
Somente as vidas desperdiçadas,
Ao som do mar.

-Esse foi menor pior.

-Sério?

-Não, só quis agradar o senhor.

-Obrigado meu filho.
            
Uma menina jovem, com belos olhos, sentou na beira daquele lugar. Ela parecia desolada. O velho de novo com sua longa barba ia sentar do seu lado. Ela gritou com o velho sem parar:

-Vai embora, seu velho bobão.

-Sua maturidade me assusta amor.

-Amor?

-Só coisas doces para alguém tão bela.

-Mas eu não sou tão bonita assim.

-Amor, deixa de dizer besteira.

-Porque o excesso de amor, hein velho?

-Filha, porque duvida do meu amor? Porque? Não te fiz nada e ninguém o fez para que você duvidasse.

Ele olhou duramente nos olhos delas.

-Mas bem se mesmo assim você quer achar que somos todos uns babacas. O abismo continua em frente, mas eu ainda acho você simplesmente o amor da minha vida.


-Mas você não me conhece.

-Mas vocês todas não são o amor da minha vida?

-Como assim?

-Você está colocando a questão errada. Eu só não quero que você se mate. Nomes são simplesmente signos idiotas. Amor, beleza e inteligência são signos que farão você feliz. Eu somente quero ver você sorrir. Eu não ligo para os signos. Já ouviu a história do tigre e do andarilho?

-Não.

-O andarilho domou o tigre. Ele achava que o tigre parecia gente e tinha alma. O tigre era temido. Era forte. Era destruidor. Mas com a compreensão do mestre, ele era só um animal. Alguém que queria viver. Mas mesmo assim, o tigre vivia sozinho. Antes da compreensão, vivemos todos sozinhos.

-Você é um velhinho bem perspicaz.


-Obrigado.

Bom dia.
Amor
Tudo voltou.
Abrace-me
Eu te abraço
Tudo fica bem.
Bem. Bem. Bem.

-Péssimo poema.

-Eu to melhorando.
            
Uma foto reluzia na casa daquele pequeno velho. Era uma foto de um navio afundado. De jornais sobre alguém morto. Será que ele só tinha morrido quando o navio naufragou ou foi antes? Depois de nove meses sem falar com ninguém, ele já se sentia morto. Ninguém podia dizer o que é viver sem outros. Depois de nove meses, ele não tinha certeza. Ele não sabia quem era. Ele achava que havia morrido. Quando chegou na costa, a primeira coisa que ele viu foi um homem se jogando do precipício. Por anos, ele achava que havia sido ele que tinha se jogado ali. Todos os anos, ele se encaminhava para as pessoas ali sentadas, esperando que alguém fosse ele ou pelo menos que alguém explicasse se ele estava vivo ou morto. Isso nunca aconteceu.

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