Maçãs metafóricas.


Duas crianças conversavam em uma livraria olhando a ilustração de livro narrando à história de Adão e Eva:

-O Adão amava a Eva- Disse o garoto sorridente.

-Porque a cobra enganou Eva?-Disse ela com olhos tristonhos.

-Ela queria saber mais coisa.

-Adão queria saber mais coisa também?

-Não sei.

-Acaba triste?

-Acaba juntos.

Ela usa um vestido imenso florido, enquanto começa a gritar com ele. Ele acaba de chegar do trabalho; veste um terno simples preto. Ele está exausto, seus olhos parecem contar uma história de total e irrestrita infelicidade. Não gosta do trabalho. Não gosta da mulher na sua frente. Sente o mundo como uma farsa que nunca poderia dar certo. A mulher, mesmo assim, insiste em gritar sem parar:

-Eu tenho direito.

-Você não tem.

-Essa já foi minha casa.

-Mas estamos divorciados, pelo amor de deus.

-Eu vim passar uma semana para conversamos sobre nossa antiga vida. Mas eu tenho direito de trazer que homem que eu quiser para cá. Eu tenho direito de beijar quem eu quiser nessa cidade imensa. Eu tenho o direito.

-Você já escutou você mesma falando? Eu tenho o direito. Eu tenho o direito. Eu tenho o direito. Cacete. Vocês ganharam todos os direitos, mas não entendem nenhuma responsabilidade. Você pode beijar e fazer o que você quiser com essa cidade inteira. Eu não ligo. Agora essa é a minha casa. Quando você foi embora, eu reformei esse lugar. Eu criei um mundo meu. Não venha trazer estranhos a minha casa, você não tem direito nenhum aqui. Você está escutando?

-E seu feminismo? A mulher pode fazer o que ela quer. Eu tenho total liberdade com a minha vida. Você está exigindo algo puritano e moralista de mim. Algo quase cristão.

-Porque diabos você vem meter a religião em tudo? Olha bem, eu não estou exigindo nada. Você vá fazer o que você quiser. Aonde você quiser. Com quem você quiser. Eu estou falando que esse é meu mundo. Eu criei essas paredes e esse lugar. Aqui é meu ponto neutro no universo inteiro. Você vem arrombando as portas depois de anos sem falar comigo, esperando poder criar suas próprias regras. Vá para um hotel. Ali você terá suas regras e fará tudo que quiser. Na minha casa, você não pode fazer o que quiser. Porque eu já te amei. Acho uma desgraça de injustiça você querer jogar na minha cara outras pessoas. Eu não ligo mais. O problema é o mínimo de bom-senso. Vocês claramente não o têm.

-Machista.
            Ela começou a gritar a palavra machista sem parar, enquanto o homem de terno com todo seu tamanho começou a dizer para ela ir embora. Tire suas coisas da minha casa. Enquanto ela tirava suas malas, ele percebia que ali ia embora o mundo inteiro. Ele finalmente teria o isolamento perfeito. Dez anos de casamento jogados fora em um minuto. Tudo porque ela não entendeu que aquele era o seu lugar. Você quebra todos os padrões, mas leva junto com eles qualquer significado. A filosofia não fez dessa forma. Ela destruiu tudo, para um dia poder construir algo novo. A destruição por gosto a destruir é somente masturbação intelectual. Você quer fugir dos ciclos intermináveis, e não ficar gritando uma nomenclatura por toda sua eternidade. Ele a amava. Talvez isso pudesse significar algo, porém naquele momento isso parecia à coisa mais insignificante da vida humana.
            Um menino pequeno com uma imensa mochila começava a conversar com o professor, enquanto a turma inteira se acomodava nas suas carteiras. Eles se encaravam de forma fixa e violenta:

-Bem, filho, espero que sua sala nova te deixe feliz. - Disse o professor.

-Não sei, acho que não entendo esse negócio direito.

-Ser feliz? Ter sentimentos?

-Não tenho a sensação de um dia ter tido eles.

-Você não ama seus pais?

-Bem, um escritor americano, um dia, escreveu que não amava ninguém nos termos que você disse. Tudo bem, eu gosto das pessoas. Mas não do jeito sentimental que você disse. Afinal, não sei quem gostaria de ser amado de um jeito sentimental; isso parece tão frágil. As pessoas amam o que as outras poderiam ser. Até que as condições futuras das pessoas viram tudo que elas amam, e não as pessoas. Vocês são muito confusos.

-Filho, eu briguei com seus pais para você vir para essa sala. Eles acharam que você seria inadequado para pessoas da sua idade. Eu acredito que você se divertirá.

-Ok. Você sabia que eu era um velho jangadeiro japonês?

-De novo, essa história maluca.

-Não é uma história, caramba. Eu era um velho japonês tentando descobrir o sentido da vida na frente do rio. Vendo a água passar e tudo aquilo ligado a partir da concepção de um deus. A água se movimentando sem parar, a cada segundo, na verdade era ela mesma se mantendo igual. Era deus se movimentando em deus, entende?

-O que aconteceu?

-Eu conheci uma mulher, daí parei de meditar. Eu tava muito perto, sabe. Da iluminação. E todas as coisas que realmente importam.

-Quase um pecado.

-De novo, detesto essa palavra religiosa. Vocês criam lógicas, religiões e significado. Sabe o que tinha na maçã da Eva segundo esse escritor americano?

-O que?

-Um bando de lógica. E ciência. E religião. Todas num pacote de maça que impediu vocês todos de se entenderem. Vocês são uma civilização inteira de comedores de maçãs.
            Uma mulher deitada na cama, respirando o cigarro na sua boca. O homem está sorrindo, mas consegue-se perceber que é um sorriso triste. Existem momentos na nossa vida que conseguimos identificar o que está prestes a acontecer. Ele deita na cama, vestindo praticamente nada, esperando as palavras saírem da boca da jovem menina. Ele já é um homem de idade. Seus livros e CDs caem das prateleiras, em um apartamento totalmente silencioso. Era como se os móveis não expressassem nada, a não ser uma dolorosa e continua solidão. Ela começou a dizer tudo, sem parar, nem respirar:

-Eu nunca mais venho aqui.

-Tudo bem.

-No duro, eu nunca mais apareço aqui.

-Eu entendo.

-Você não vai brigar comigo?

-Não. Porque brigaria?

-Você não se ofende de eu preferir as drogas, sexo com estranhos e muito álcool?

-Não existem padres nessa cama. Só eu.

-Bem, eu não posso mais te ver. Mas eu gosto muito de você.

-Você não precisa mentir, sabe. Eu to bem.

-Você está com raiva, isso sim. Passivo-agressivo. Porque eu não posso ter essa vida e ter você?

-Porque eu to cansado. E você não tem tempo para passar comigo.

-Você exige muito de mim. Muita atenção.

-Não. Isso não é verdade. A partir de hoje, nunca mais falaremos. Daí você vai perceber; eu exijo zero de atenção.

-Como você pode dizer isso comigo ainda na sua cama?

-Bem, você acaba de dizer que prefere várias coisas acima de mim. Eu prefiro poucas coisas acima de você. Uma delas é o total e o irrestrito silêncio. A lâmpada desse quarto quebrou há dois meses. Todo o dia penso em consertar. Lembro da escuridão total ao subir na madrugada nessa cama. Ainda assim deixo a lâmpada quebrada. Gosto da sensação de estar totalmente perdido no breu do silêncio. Quando tudo começa a ganhar contorno, fico bastante triste de perder essa sensação.

-Você é maluco.

-Pelo menos não to gritando que quero drogas, álcool e sexo com estranhos. Eu fico quieto. Vou conhecendo as pessoas devagar. Silêncio irrestrito. Desconhecidas vêm e vão sem nunca deixar um rastro. Você grita. Sabe, você é um robô.

-Um robô?

-Tem uma série antiga que tem uma raça chamada Dalek. Eles são mutantes dentro de robôs imensos. Eles são programados somente para matar e destruir tudo. Eles não têm qualquer sentimento. Daí, um deles para se salvar teve que misturar seu sangue ao de um humano.

-E daí? Eu sou um robô misturado com o humano?

-Calma. Ele não consegue aceitar os sentimentos que tem. Para de matar. Para de destruir. Ele implora que o matem. Porque ele não sabe conviver com os sentimentos que tem. Ele implora para seus inimigos tirarem sua vida. Ele começa a desejar a luz do sol. Dentro daquela armadura imensa, tem um pequeno ser vivo. Um mutante inofensivo que sente a luz do sol pela primeira vez, enquanto seus inimigos cumprem seu desejo e o matam. Você é esse mutante.

-Você se acha muito esperto.

-Eu sou muito esperto.
            Ela pegou suas roupas e foi embora. Eles nunca mais se veriam. Ele sabia disso. Ela sabia disso. No intervalo do conhecimento de tal fato, eles viveram uma vida juntos. Na imaginação de ambos.
            
            Um adolescente discute com o pai no banco de um imenso parque no outono:

-Poxa vida, pai.

-O que foi filho?

-Você está apaixonado por aquela moça. Não consegue parar de olhar para ela.

-Não estou não, filho.

-Olha, pai. Com todo o respeito, mas já percebi que ela é sua amiga de trabalho. E você a ama. Desesperadamente.

-Filho! Você tem que aprender que na vida tem coisas que tem que ficar não ditas. Disseram-me que ela é maluca e totalmente superficial.

-E ainda assim, você a ama. Seu velho danado.

-Velho danado?

-Tudo bem. Estou exagerando, mas você entendeu. Vá atrás dela. Vai. Vai. Vai.

-Mas tudo vai se repetir filho. A vida é uma máquina de repetições aleatórias. Você vive, sofre, vive de novo, sofre de novo.

-E daí você se acha no direito de parar a máquina?

-Acho sim.

-Porcaria nenhuma. Meu pai não era um chorão.

-Chorão?

-Você vai ficar de castigo. Você sabia disso.

-Pelo menos você vai falar com a mulher que você ama .Quem sabe você não beija ela?Seria bem legalVocê ficaria bem feliz.

-Filho!
            O adolescente se afastava e começava a falar com a bela mulher; apontava para o seu pai sem parar. Gritando palavras bem óbvias. O pai começava a rir. Ele já havia desistido da vida romântica há muitos anos. Quando por acaso, se apaixonou completamente pela mulher do seu lado. Ela era nova. Olhou para ele. Um homem com cinqüenta anos na cara virou para si mesmo e disse: bem, são anos sem ninguém, deve ser isso, amor a primeira vista, olha que besteira. Infelizmente, todos os dias ele passava a mesma quantidade irreal de tempo olhando para o rosto da bela moça. Ela não tinha nada em comum com ele, e todos os amigos pareciam dizer a mesma coisa: não faça papel de idiota. Ele quis muito isso. Ele quis nunca mais vê-la na sua vida inteira. Agora, enquanto seu filho apontava para ele, ele só conseguiu entrar em pânico. Totalmente em pânico. Todas as maças de lógica e inteligência haviam feito ali naquela pobre homem o final deste conto. Em que um homem destruído pela vida entrar em total pânico a ver a mulher que ele ama se aproximar dele. Olhar para ele. Viver com ele. Se ao menos ele pudesse correr. Ele nunca mais pararia. Malditas maçãs metafóricas.

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