Peixes estranhos.
Ele
senta do outro lado da mesa da direção mais uma vez:
-Eu
finjo que escuto o que você diz. E você finge que se importa.
-Mas
eu me importo.
-Na
verdade, no horário das três você está fazendo sexo com a sua secretaria, logo
eu estou atrapalhando isso.
-Como
você sabe?
-Realmente
importa? Você me manda fora dessa sala agora, e se diverte com seu horário
marcado com a bela mulher na mesa de recepção. O que acha?
Ele colocou o fone de ouvido. A
música tinha algo mais ou menos a ver com a história que se passava na sua
mente: peixes estranhos passavam do seu lado, enquanto uma água fria tomava
conta do seu a redor, ele estava no mar. Enquanto escutava o barulho das
pessoas que iam embora, escutando o som do mar que o consumia; ele lutava para
ir até o fundo. Até que ele escutou um barulho:
-Oi.-
Uma menina com olhos negros, mas como cabelo azul começou a falar.
-Oi.
-Você
lembra-se de mim?
-Sim,
a pessoa que me fez tirar os fones de ouvido.
-Você
é sempre assim simpático?- Ela riu.
-Na
maioria das vezes.
-Você
bate com a mão na perna, por quê?
-Estou
contando os tempos da música: 1,2,3,4,5.
-Por
quê?
-Você
sabe que a maioria das crianças supera a frase do porque, certo?
Ele se lembrou dela. Escorrendo da
sua memória duas ou três cenas se destacam. Garrafa de álcool. Ela. Algum
contexto aleatório. Parece suficiente.
-Bem,
que tal a gente não seguir o processo todo?
-A
gente não finge que lembra um do outro, que a gente se compreende ou qualquer
coisa assim.
-Como
assim?
-Pulamos
que temos qualquer conexão, que entendemos um ao outro. Vamos direto ao ponto.
-Tudo
bem.
-Você
quer ficar comigo de novo?
-Que
tipo de pergunta é essa?
-É
uma pergunta direta e simples.
-Mas
não se pergunta isso.
-Olha,
a outra opção é: dividimos assuntos terríveis sobre coisas que realmente não
gostamos, somente para podermos nos beijar de novo. Se isso não for suficiente
forjaremos qualquer tipo de ligação, um pouco por desespero ou carência.
Provavelmente álcool ajudaria bastante. É isso.
-Porque
você foi tão grosso?
-Bem,
se você não quer dar uma resposta direta, posso continuar a escutar minha
música.
Ele colocou o fone dos ouvidos e
saiu andando contando os tempos da música. Mínima, semínima, qual era a próxima
mesmo? Ele não lembrava, mas seu cérebro passou a automaticamente contar: havia
uma lógica bizarra nas pessoas que passavam ao seu redor e compasso da música;
um ensaio de um videoclipe ainda não lançando.
-Oi,
é isso.
-O
que?
-Minha
pretensão musical.
-Só
isso?
-Nunca
fui aceito numa banda. Nunca quiseram tocar comigo. Não sei compor, não dedilho
rápido o suficiente. Não sei compor tempos, ou fazer as pessoas se emocionarem.
Logo só quero tirar esse cd e mais nada.
-Porque
esse cd?
-Você
já se detestou?
-Claro.
-O
que você escuta nesses momentos?
-Jazz.
-Por
quê?
-Não
sei, me dá vontade de viver e essas coisas. Eles improvisando, se divertindo.
-É
como se fosse isso para mim. As letras assustadoras com os sons distorcidos
fazem sentido.
-Tudo
bem. Você não vai mudar de ideia?
-Não.
-E
depois de aprender as músicas?
-Eu
grito elas do meu apartamento com toda força.
Bem, seria isso; até a volta da
garota do cabelo azul.
-Bem,
você é bem convencido, não?
-Por
quê?
-Eu
descobri a banda que você gosta.
-Como?
-Aqui.-
Ela me mostrou um folheto com uma foto minha e um pôster da banda.
-Como
você conseguiu?
-Não
importa. É essa?
-É,
essa mesmo.
-Eles
são bons.
-Obrigado.
-Não
o suficiente para basear sua vida neles, mas são bons.
-Valeu.
-Não
tem uma música de peixes comendo sua alma ou algo assim?
-Algo
assim.
-Bem,
pensei em algo mais animado.
-Animado?-
O rosto dele fez uma contorção.
Ela o pegou pelo braço. Era um pátio
imenso cheio de violões. Havia alguma ali que não fazia sentido. Dois ou três
violões em tempos diferentes, mas concordando um com outro. Era animado, mas ao
mesmo tempo visceral. Era como se num dia de verão você tivesse enfiado cerveja
o suficiente na barriga para explodir e tivesse pegado um violão: você não se
importa com o tempo, mas ainda consegue conta-lo.
-Bem,
o que você acha?
-Gostei
do lugar, posso ficar aqui por um tempo?
-Pode.
Ela me deu a mão. Aquilo era
assustador. Sempre me assustei com a teoria de um livro para adolescentes: o
sucesso dos Beatles era basicamente pelo sucesso que eles tiveram em escrever
uma música sobre a vontade de dar as mãos. Muito mais interessante dos Beatles era
uma música sobre a separação chamada para ninguém, cuja ideia era básica era
alguém indo embora sem te amar mais. Isso faz sentido. O negócio todo de dar as
mãos parece adequado demais; irreal demais. Projeção de uma indústria cultural.
Mas ao mesmo tempo, funciona. Vai ver o que as pessoas precisam é o simples, e
não a distorção. Simples. Conta os tempos. Tempo inteiro. Tempo cortado. Tempo
não existe.
-Porque você foi chamado para a mesa
da direção?
O professor começou a falar alto:
-Não
existe música como de antigamente. E os relacionamentos eram tão puros e reais.
Se vocês pensarem direito, isso é o problema com a quebra de moralidade. Por
isso, essa aula de religião existe.
-Professor,
eu tenho uma dúvida.
-Qual?
-A
música existe.
-Como
assim?
-Ela
existe. Em qualquer coisa. Na sua reclamação, na gesticulação. Existe música.
Em qualquer banda que passe horas em uma música que eles acreditem.
-Filho,
você não entende que a boa música e a moralidade andam juntas.
-Moralidade?
-É.
-Na
religião?
-É.
-Sabe
quem deu a lista de judeus que deveriam ser mortos no holocausto?
-Não.
-A
igreja.
-Eu
poderia dar mil exemplos, que não importariam. Já ouviu falar de Erasmo?
-Sim.
Grande renascentista cristão.
-Não.
Um cara que detestaria o senhor. Ele fala que ser cristão é uma atitude e não
decorar uma série de livros. E isso é mais ou menos o que eu penso da música e
da vida. A doutrina, a religião ou o gosto não importam. O que importa é sua
atitude. Você pode fazer música eletrônica, fazer sexo com a metade do mundo
inteiro e ainda ser a pessoa mais moral e melhor em música que conheço. Não
importa gosto, nem mesmo sexualidade, nem nada; somente sua atitude, a forma
com que você trata os outros. Por exemplo, o senhor se pinta de bom professor,
mas anda fazendo sexo com pelo menos duas alunas da sala que tem menos de 18
anos. Eu, por outro lado, sou um drogado maluco suicida. Ainda imagino que
tenho mais o que falar sobre ética que o senhor. Com todo o respeito.
-PARA
A SALA DO DIRETOR.
É. Acho que talvez tenha sido por
isso. Mas é só um chute. Ninguém mais entende quando você fala com todo o
respeito.
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