Não me pergunte mais.
Você me definiu há muito tempo. Uma peça. Dois
personagens. Parece absurdamente simples.
Um Acredita na verdade.
O outro não.
Parece uma peça com fim lógico. Mas afinal o
que será que fomos que não uma peça milimetramente orquestrada?
Penso cada vez mais no seu papel de
questionadora: aquela que sempre destruía qualquer intenção de verdade ou
validade. Aquela que sorria das crenças alheias. Será que não foi esse sorriso
que eu lhe imputei? Na calada noite, talvez tenha sido eu com o meu sonho
absurdo que lhe trouxe idéias tão tolas.
Um dia você perguntou por que eu havia criado
aquele personagem. Eu lhe disse que foi pela peça. Não foi você aquela que
destruiu todas as crenças. Fui eu que te dei esse papel e você com tamanha maestria
soube conquistar o papel. Você acreditou tanto naquele papel que fui eu que
tive que defender o contrário:
Eu construí um castelo em que tudo deveria ser a
verdade, o sentimento e a certeza. Preguei as paredes com tudo que me
havia sido passado por anos de ordem e controle de subjetividade. Fiz as portas
como quem diz adeus a qualquer pensamento crítico. No meu castelo, você era
princesa. Um papel deveras ultrapassado para uma menina que queria ser Clarisse
Lispector.
Imagino se algum dia você se perguntou sobre
nossa charada. Se com os passar dos anos, você entendeu que aquilo era uma
piada. A piada mais séria que eu já escrevi. Se aquilo tudo fosse verdade,
estaríamos salvos. Se aquilo fizesse sentido para você, logo estaríamos salvos.
Sim, repito mais que uma vez, o nosso vinculo estaria formado.
A verdade da mentira mais lavada é que eu senti
o abismo perto de você. É um ar envolto da pessoa que nos faz perceber a distância
que nos separada da realidade. Em você, era um mundo inteiro. Sentando no meu
canto isolado do mundo, eu entendia o que você sentia. Você sentada do meu
lado. Estávamos de mãos dadas no lugar mais assustador do mundo. Nada mais
importava. Nenhuma ordem ou poder me tiraria daquele lugar: a não ser você.
Hoje em dia me pergunto sobre o dia em que eu
estava com trinta e nove de febre bêbado na frente do hospital. Mais algumas
horas, eu estaria completamente destruído. Sentado no meio-fio do hospital, eu
percebi que tinha chegado ao limite. A febre iria aumentar, o álcool e o delírio
febril me transformavam na sombra do homem que já fui. Era ali. Uni meu abismo
e o seu e o encarei. Havia perdido. Até que uma vontade inexplicável me levou
até a porta. Meus dois pés se encontraram um depois do outro no caminho da
porta. Ali havia alguém esperando junto com remédios, camas, exames e eu
estaria vivo. O que foi que me trouxe até ali? Você tinha sumido. Somente
restava eu e minha patética piada. Algo me levou até ali. A pura e absurda
vontade da dúvida. Se nada era real, logo havia a possibilidade contrária:
minha piada poderia ser verdade. Os dois extremos se completam num sonho sem sentido
onde eu poderia viver. Eu vivi. Agora você tem sua resposta. Não me pergunte
mais.
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