Diário das primeiras impressões na terra.
A
memória é o elemento fundador do que se define como humano. A partir da memória
construímos histórias sobre quem são nossos amigos, nossos pais e tudo que gira
ao nosso redor. A memória cria a nossa essência: fora de um sentido platônico,
viramos uma massa não definida de sentimentos alheios. Por isso, o humano pode
não existir: no momento em que ele é esquecido, ele não existe.
O homem que estava na praça tinha
sido abandonado pela sua memória mais bela. A menina, cujo nome eu não consigo
lembrar, havia apagado sua memória. Sem fotos, mensagens ou qualquer outro tipo
de coisa, ele havia sido apagado. Ele sempre imaginou que se pudesse pelo menos
nela guardar seus sentimentos difusos, havia esperança para a sua existência.
Mas no momento em que ela apagou-o de sua cabeça, sua existência tinha parado.
O contrato da empresa para apagar suas lembranças havia sido feito: em nome de
uma vida mais plena, desapegada de memórias que não faziam mais sentido.
O
fato de existir uma companhia para apagar lembranças diz muito sobre os seres
humanos: eles têm coragem de apagarem a si mesmos, porque as memórias são o que
fundam seus seres. Diferente de tentativas anteriores frustradas, a existência
não existe como um dado empírico. Ao contrário, ela existe somente a partir da
imaginação que os outros reconhecem. Só a partir de outra imaginação, o
individuo consegue se entender como si próprio. Por isso, a memória é algo tão
importante. Ela cria o que somos.
Um alienígena apagado de memórias
humanas logicamente deixa de ser humano, e é nesse ponto da história que
encontramos nosso pobre personagem. Deixado a sua própria sorte num lugar
estranho cujas regras ele havia acabado de aprender. A primeira coisa que ele
deveria conseguir era uma memória para si mesmo. Ele queria entender exatamente
como aquele planeta funcionava, mas já suspeitando que a sua missão fosse uma
pobre ilusão de universalidade. Universalidade de todos os mundos paralelos,
que eram unidos pela simples visão da imaginação.
Afinal qual era sua memória mais
bonita: Era difícil escolher, afinal aquele corpo humano tinha conseguido ao
longo de poucos anos uma coleção incrível de momentos. Ele consegue lembrar-se
de um sentimento invadindo seu corpo de quando ele foi esquecido. Em troca
daquilo, ele também se lembrava de olhar por um óculos: se eu entender o que se
passa entre a visão dela e o mundo, eu posso seguramente entende-la. Ele via
com esperança aquele momento que se cristalizou sobre si mesmo. Se ao menos houvesse
entendimento, ele poderia prever o comportamento alheio. Ele poderia ter amor.
O alienígena não entendeu o que ele quis dizer com amor.
Pesquisa
rápida no computador sobre amor:
-Referência
a sentimento que causa suor, palpitações no coração e lágrimas. Referência a
filmes de Hollywood mal escritos e com finais previsíveis. Amor é a paixão com
o tempo passado. Amor é uma das criações dos seres para manterem a
sobrevivência no começo da evolução. Amor é um quadro subjetivo referenciado
por padrões sociais. Amor é a única possível salvação daquela raça, mas ao
mesmo tempo fundava suas principais catástrofes.
Para um computador de uma raça tão
inteligente, as informações eram bizarramente confusas. Ele pensou que poderia
entender melhor sobre aquele ser em especifico se entendesse como ele imaginava
a si mesmo:
Acessar
referência primaria de futuro: acordes se espalham sobre a guitarra enquanto
crianças choram no berço. Ele toca em silêncio como forma de acalmar o sono de
seus filhos. Alguém grita pela esquina da sala, ele entende que a mamadeira
está pronta. Ele veste o terno rapidamente, enquanto ela segura a guitarra no
meio da sala. Existe uma comicidade essencial naquele momento: ela, segurando
sua guitarra, enquanto duas crianças choram. Imagino que esse não foi o trato.
Memória do ser humano é infelizmente
fraca para análises profundas; futuro associado à manutenção da espécie. Alguma
coisa escapava a sua mente: era como se ele fosse impossibilitado de entender o
que havia por trás daquele comportamento sexual. Amor. Palavra estranha.
Uma memória se deslocava para o
primeiro plano: duas pessoas conversando num corredor sobre suas vidas,
enquanto quase dormiam. Uma mensagem; se todos podem ter a mesma vida
qualitativa, nós temos um ponto de igualdade. A lógica do humano que estava
pensando era se aquela memória alheia podia ser tão boa, calma e irreal logo
havia essa possibilidade. A parte do coração que queria pular do peito dizendo
eu te amo e namora comigo do humano tinha sido fechado; uma porta imaginaria
havia se lacrado como se num passe de mágica houvesse tido controle total sobre
seu imaginário emocional.
Por
outro lado, a memória do seu amigo no corredor com sua futura namorada e sua
própria história podiam ter uma porta aberta; escancarada de possibilidades
boas. Se ao menos isso fosse possível, logo qualquer coisa era possível. Portas
sendo fechados e sendo abertas fazem sentido num mundo caótico sem razão. Não
importa tanto para aquele ser humano se sua porta tivesse completamente fechada
por aquela que o esqueceu, desde que os amigos ao seu redor mantivessem as
portas abertas para as suas próprias vidas. Felicidade por tabela é uma das
melhoras criações desses seres apáticos e sem criatividade; a memória alheia
nos ajuda a reparar a nossa própria memória destruída
Um cartão chegou pelo correio:
MEMORIUM:
Toda a história do mundo não é mais que um livro de imagens refletindo o mais
violento e o mais cego dos desejos humanos: O DESEJO DE ESQUECER.
Herman
Hesse
Intrigado pelo cartão, o alienígena se
endereçou até o grande prédio da empresa. Um momento, senhor. Ele está te
esperando. Um médico sério com longos olhos graves o olhava:
-Eu
te disse que o tratamento teria falhas.
-Que
tratamento?
-Apagar
sua memória, você chorando, dizendo que ela te apagou aqui. Não lembra¿
-O
que?
Num momento estava claro que ele não
era um alienígena, ele era só um homem. Quando ele percebeu o roteiro da
história: ela tinha usado a companhia para apagá-lo da sua memória, ele tinha
feito o mesmo com ela.
-Mas
não deu certo.
-Porque?
-Nós
não conseguíamos apagar a memória dos óculos.
-E
então?
-Apagamos
toda sua memória e o transformamos num alienígena. Esperando que assim, você
esquecesse. Mas...
-Eu
estou aqui.
-Está.
-
Diga-me uma coisa, senhor médico.
-Qualquer
coisa.
-Porque
você mandou o cartão?
-Você
falou que lembraria. Depois de meses, com aquele cartão, você lembraria.
Eu lembrei. Finalmente lembrei. Eu
escrevo por uma razão. Existem pessoas que acreditam que podemos ver
completamente o outro. Que existimos na outra pessoa e lemos seus pensamentos.
Isso seria possível. A cabeça da mulher sobre seu peito lhe conta suas
respirações, por isso você sabe de tudo sobre ela. Só que isso não é verdade. O
outro é um ser estranhamente distante; é absurdo pensar que sabemos sobre o
outro tudo. Nós temos que reconhecer que o outro é inacessível; diferente.
Quando conseguimos isso, a outra pessoa nos aparece. A partir da diferença,
entendemos o outro. Por isso, eu não esqueci os óculos. Por isso, eu sou só um
humano num planeta esquisito. Não sou um alienígena num mundo que não conheço.
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