Comédia de erros.

A enfermeira segura minha mão. Vejo nos olhos dela que ela não sabe o que dizer. Ela fica num misto de assustado e pena que me tira do sério. Penso quanto tempo ela tem visto pessoas como eu, mas ainda assim ela sorri. Ela tem belos olhos, e uma incrível paciência com as minhas histórias:

-E como você a conheceu? Você tem que contar de novo.

-Eu estava no parque. Eu já te contei isso.

-Sim, esperando com uma rosa da mão.

-Não, minha filha. A vida não é como nos livros. Eu estava esperando com uma gastrite danada e uma ressaca.

-Faz mais sentido.

Será que eu confundo as histórias? Eu me lembro de você no banco do parque, mas não lembro de tudo. Eu me lembro das lágrimas da primeira vez que você me contou sobre sua mãe, mas não me lembro de nada a não ser isso. Seus olhos. Isso. Seus olhos estavam caídos e desesperados. Você inspirava um sentimento estranho. Era como se minha gastrite não tivesse fim, por isso bebia tanto. Sonhei que o álcool substituiria sua falta.

- Espera um pouco. Não entendo. Vocês se beijaram afinal?

-Você não esteve prestando atenção. Isso não é importante.

A enfermeira estava triste. Os folhetins de época diziam claramente que o ponto de impacto da história é o beijo. Depois de tanto anos, o mínimo que lhe devia era uma cena de beijo.

-Tudo bem. Conto a história. Eu comecei falando sobre a amiga dela. Aquela que parecia queria ficar com ela. Beijamo-nos e foi isso.

-Cadê a magia? Os pombos voando e a música atrás acompanhando?

Agora tenho certeza que confundo as histórias. A minha memória não é a mesma. Mas eu lembro. Eu me lembro de dizer que a magia estava em todos os dias que passamos juntos e não aquele primeiro beijo. Ela não entendeu. Claro que não entendeu. Numa cultura onde o primeiro beijo constitui o final da história, a felicidade dos dias comuns não importa. Eu não importo.

- O senhor nunca contou o que estudou na faculdade quando quis ser professor. Já que não quer contar mais sobre seus amores, diga algo.

-Eu estudei sobre a impossibilidade da ética existir.

-O que?

- Eu estudei como ninguém tinha direito de impor nada a ninguém. É como se você vivesse numa prisão de valores que não são seus. Eu quis dizer que essa prisão era imaginária e não deveria existir. É como se eu pudesse curar o mundo inteiro dizendo o que todo mundo já estava cansado de dizer.

-O senhor não diz coisa com coisa.

-Olha, O que os principais dogmas nos deram? Sejam chamados de direitos humanos ou qualquer consenso forjado. Morte, assassinato e homicídio por valores exportados. Minha ética nunca quis impor nada a ninguém.

-Mas e a compreensão?

-Meu amor, meu doce e minha vida. Onde a compreensão existe? Somos todos uma comédia de erros mal feita, mas extremamente divertida.

Eu estava errado em te assustar, eu sei disso agora. A compreensão é importante. Lembro disso, e agora confundo de novo as pessoas que habitam minha memória. Eu lhe disse que você tinha que acreditar em algo. Você me disse que tudo era mentira e que eu era um mentiroso ruim. Você nunca me entendeu.

-Sabe, aqui com você nesse parque. Eu lembro porque é importante acreditar em algo. Não que algo possa existir com certeza. As garantias são mentiras bonitas que dizemos até acreditar. A coisa é que se nós acreditássemos que nos éramos algo logo nós éramos algo. O absurdo é acreditar na beleza de algo que sabemos que não é. Isso era eu e você. Nada mais que isso.

- Você ainda não me contou da reação dela quando o livro chegou.

- Ah, isso. Ela nunca mais falou comigo e sumiu da minha vida.

-Como assim?

-Ela sumiu.

É estranho contar isso de novo. Eu esperava você naquele parque com tortas de maças ou será que continuo confundindo as histórias? Tudo é confuso na minha memória. É como se as ligações das minhas sinapses estivessem sido destruídas uma por uma à medida que eu vou envelhecendo. Será que devo contar a pobre enfermeira que seu corpo continuou comigo por meses, mas que você mesma já tinha prometido sumir no instante que lhe dei o livro. Um problema de escrever sobre sua vida é que eu assusto um bocado de gente expondo o que sonho em linhas tortas.

- A primeira vez que eu conheci meu autor favorito, já contei essa história?

-Não. Não contou. O famoso escritor ao vivo? Como você fez isso?

-Ele disse num dos seus contos que lidaria com qualquer um que não fosse um babaca. Então fui até seu jardim e gritem bem alto: Um não-babaca aqui esperando. Ele me recebeu. Ele me contou uma história sobre sua vida. Disse que ele não havia se tornado o que queria ser, mas que amava profundamente tudo que tinha feito. Ele se lembra de todas as cartas de amor e pediu para eu esconder. Ele não queria que sua parte mais íntima fosse exposta quando ele morresse. Ele me fez prometer. Você faria o mesmo por mim, amor?

-Sim. Eu faria. Mas porque você não quer que o mundo veja seu lado mais doce?

-Eu perguntei a mesma coisa ao velho. Ele me respondeu por que a vida é uma comédia de erros, e ele não queria que ninguém se aproveitasse da sua comédia.

Ela me passou o remédio gentilmente. Ela escrevia tudo que eu dizia. Talvez por interesse ou gentileza, não sei dizer ao certo. Ela tinha seus olhos, eu devo agradecer por isso. Uma gentileza final do universo faz tudo ter um pouco de sentido. Acho que no fundo vivi todo esse tempo por isso.

Sei que confundo as lembranças de novo. Mas eu me lembro de esperar naquele parque como se não tivesse outro momento. Fazia anos que não conversamos e você marcou ali no primeiro lugar que te vi. Eu ri da comédia que isso parecia ser. Quis te dizer profundamente que ali não era o lugar que eu queria esperar. Depois de você, eu esperei debaixo de um bloco por um ano todos os dias, enquanto a chuva caia. Eu esperava por alguém que sempre apareceu. Alguém que nunca me deixou esperando. O relógio para o nosso encontro existia como algo eterno guardado na sua estante. Você nunca se importa. Nunca importa.

- Senhor, sei que é feio perguntar sobre isso.

-Minha filha, tão perto da morte, nada é feio.

- Me diga, por favor, e as bombas e os planos? Os mitos que você derrubou as listas de suspeitos de todos aeroportos do grande irmão?

- Filha para cada homem verdadeiramente culpados, centenas eram mortos em interrogações. Aquilo tinha que parar. Eu podia. Você entende? Eu tinha o poder de intervir na vida de centenas de pessoas, meu coração se acelerou. Os psicólogos estão certos de dizer que alguém como eu tem o potencial de ser um monstro. Homens de verdade são sempre monstros que nunca se transformaram. Eles são pessoas que andaram até a beira do precipício e quando ele ousou olhar de volta, não correram. Eu tinha que fazer aquilo, eu tinha os meios.

-E as bombas?

- Um hobbie. Um escritor que eu gosto diz que no mundo existem meninos e lobos. Um menino destruído por um lobo se transforma num lobo e causa mais destruição. O grande irmão perseguiu e matou pelas mortes dos atentados, mas isso não justifica. Lobos criando lobos que criam lobos é um ciclo vicioso. De vez em quando, um homem bom tem que sacrificar seu sangue por algo. Um homem se transforma num monstro para salvar outros. As bombas nunca foram explodidas. Eu usava isso para me manter com sanidade num mundo de lobos. Entende?

- O senhor não parece o monstro que eles falam.

-Eu não sou.

A enfermeira lembrou-se dos programas que o velho havia criado: redes de palhaços em todos os hospitais do país e fundações de jovens nos lugares mais perigosos daquele país. A imprensa dizia que aquilo eram fundações piratas para esconder seu império do mal, entretanto talvez aquele fosse seu único império.

-Posso te contar uma última história antes de dormir?

-Pode.

- Sabe a última coisa que lembro dizer para o meu filho?

-Que você o amava?

-Não. Que besteira. Eu disse para ele se lembrar do dia em que lhe ensinei artes marciais. Com muita calma, ensinei para ele como colocar as ataduras na mão para você não deslocar seus ossos. Ensinei que a força estava em como você encarava o adversário. Ensinei que devemos lutar até o final, sempre. Mas depois disso, fiquei sem palavras. Nunca soube direito o que dizer sobre a mãe dele nunca estar por perto, mas eu quis lhe explicar. Lutamos ferozmente, e ele se lembrava de tudo que havia lhe ensinado até aquele dia. As técnicas básicas de boxe e krav maga no seu sangue. Ele sorria. Quando ambos caímos no chão suados, eu lhe disse para me escutar.

-Filho, o motivo por sua mãe não estar aqui. Por tudo. O sofrimento, as doenças e todas aquelas coisas que não prestam sobre a vida é que no fundo somos uma comédia. Uma comédia feita para que se os risos se acumulem, mas nunca sem seu preço. A platéia só ri do erro e do falho, então precisamos disso. Para que o resto da trama faça sentido, é preciso que a vida seja uma comédia de erros.

Ele me disse que me amava e que eu não precisava me preocupar. Ele tinha tidos os melhores pais do mundo. Eu sempre quis lhe dar o que havia sido me passado em matéria de amor, e acho que ele entendeu. Agora abraço a enfermeira e peço por um último beijo. Achei engraçado lhe pedir por algo de folhetim. Por pedir a moça dos olhos desesperados e caídos por um último sinal de fé. Achei que alguém em algum lugar poderia sorrir sobre a ironia. Esperei que houvesse um final para essa comédia de erros sem fim.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Congresso geral do Fracasso.

A morte das palavras.

Esquecimento.