A casa tomada.


Nos primeiros raios da manhã, eu e Matilde nos abraçávamos delicadamente. Sentíamos o cheiro do começo do dia invadir nossos pulmões depois de uma simples e bela noite de amor. Maltide me perguntou o que era aquele barulho: o silêncio era quebrado pelo ressoar de vozes. O casarão em que vivíamos tinha seis quartos, três banheiros, duas salas e um banheiro. Não saímos do primeiro quarto e da cozinha, mas conhecíamos toda a casa, até o momento em que ouvimos barulho do primeiro andar da casa. O primeiro andar havia sido tomado. Trancamos a porta e ficamos presos no segundo andar da casa.

Matilde olhou para mim com olhos suplicantes como que dizendo: perdemos parte de nós do lado de lá. Meus CDs, seus filmes, meus pôsteres e uma vida inteira em comum das nossas famílias. Matilde corria gritando pelo segundo andar, até que lhe acalmei: é normal, o mundo é assim, tira partes da gente quando menos esperamos. Ela olhou para mim espantada descobrindo uma nova sabedoria que depois de anos de casamento nunca tinha aparecido. Fizemos amor rapidamente; quase pedindo desculpas aos moradores de baixo pelo barulho.

Continuamos nossas rotinas dos anos que se passaram: ela fazia suas pesquisas numa grande mesa de estudos, e eu me isolava na biblioteca. Até o temível dia que invadiram o segundo andar: perdemos as fotos dos nossos filhos. Matilde perdeu seus cálculos de anos de estudos e ficou desesperada sem o sentido que regia sua vida. Sem meus livros, uma parte minha deixou de existir. Meu corpo foi lentamente decaindo, já que ele sabia que sem os livros eu não era o mesmo. Eu era tão próximo daqueles livros como filhos que se perderam espalhados por todo o mundo.

Matilde e eu nos trancamos no terceiro andar. Havíamos perdido tudo, mas tínhamos um ao outro. Por um momento, isso bastou. Segurei sua mão na tentativa de reafirmar nosso amor, mas ela dispensou. Ela disse que já sabia, que no final das contas era aquilo que nos restava. Os dois se olhando enquanto nossa casa era lentamente tomada.

Os ladrões invadiram o último andar. Eu e Matilde nos separamos. Não restava mais nada. Saí do escritório e deixei os ladrões me roubarem. Disse lentamente a aqueles que vinham tomar toda minha vida: Vocês tomaram Matilde, do que me importa o resto da casa? Sem Matilde, um escuro imenso começou a tomar conta da casa. Não adianta mais fugir. A luz que iluminava o canto mais minúsculo da casa foi embora. Então ela é toda sua. Parabéns, pela casa tomada. A casa foi embora, assim que Matilde se foi.

Comentários

  1. muito bom rapaz. muito bom! tente sintetizar mais suas histórias (como fez com essa)! assim fica mais facil de ler. ou se não solta ela em pedaços picados. haha! só uma dica! abraço!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Congresso geral do Fracasso.

A morte das palavras.

Esquecimento.