O outro.

Um menino de 12 anos, na quarta série, começa a andar pelo recreio. Vocês não conseguem imaginar como é duro ter que usar um freio-de-burro como aparelho nos dentes e para a coluna um longo aparelho de madeira que ocupa todas as suas costas. Imagina como é fácil ser popular com essas características, e talvez o pior que essa seja justamente a fase crucial em que meninos e meninas passam a descobrir o beijo, o encontro e todas essas coisas tão legais que vem quando você cresce. Vagar pelos recreios sozinho é uma coisa, o que era mais grave era saber que você era diferente: um médico diz a sua mãe na beira do consultório; bem, seu filho tem uma inteligência acima normal junto com o desvio de atenção que nunca o deixara totalmente ancorado no mundo; ele é outro no meio de muitos. Bem filho, seu avô e eu sobrevivemos com o mesmo problema, é seu trabalho viver nesse mundo, eu só te trouxe aqui. Obrigado.

Doze anos de idade é a idade que você começa a gostar de garotas; você se pergunta o que é o beijo, e como conseguir um. Quando você tem um aparelho nas costas e outro no dente, tudo que você consegue é uma rejeição ao outro depois de outra; a pessoa passa a sentir como se não valesse nada. O que alguém faz quando se encontra totalmente solitário num mundo em que sua voz não é escutada? Não é nem ao menos mencionada? Onde todas as mulheres rejeitaram pela sua aparência? Ele aceita a primeira oportunidade que a vida lhe dá, qualquer coisa serviria para acabar com a solidão e eu digo qualquer coisa.

Ela tinha olhos negros e cabelos negros, tinha uma pele branca que reluzia ao sol. O garoto que não existia logicamente estava apaixonado por ela, sem dúvida nenhuma. Desde o primeiro dia, na quadra de futebol aonde ela veio até ele e começou a conversar:

- Porque você nunca brinca? E você nunca fala? Eu te vejo faz quatro anos na mesma sala, e eu nunca te ouvi falar uma palavra sequer.

A resposta foi nula, mas ela continuou conversando. Ela ignorou completamente a falta de voz do garoto, que estava sorrindo pela primeira vez em muito tempo. Talvez, ela fosse alguém que lhe escutasse, talvez. Ela tinha um namorado, todas as meninas bonitas naquela idade tinham um namorado; alguém com quem descobrir os beijos escondidos e as nuances do que é sentir algo nessa bomba de sangue que vive no nosso peito. O nome dele era João, e ele não gostava do fato que ela conversava com aquele outro garoto. Ele nunca gostaria: quem era aquele menino estranho para ficar ali calado? Perto da sua namorada? Ele era maluco? Ele queria morte? João pensava isso todos os dias.

O aniversário da menina estava chegando, e ela estava distribuindo os convites entre os colegas da turma. O menino sentava com ânsia, quase sem conseguir respirar, esperando o convite da mulher que amava: ele nem sabia o significado do amor, mas isso não quer dizer que ele não tenha visto os filmes da TV e acreditado veementemente que ela era somente sua; ele iria resgatá-la no final do filme, com pombas voando e uma boa música no fundo. Ele estava quase sem ar, quando ela passou na sua cadeira e o evitou como se nem ao menos tivesse o visto. Ele entrou em desespero, correu até o banheiro no final da sala e começou a chorar. Ele chorou por horas, sem ninguém perceber que ele tinha ido embora. Ele estava sozinho, completamente sozinho, essa realidade o batia com uma força inexplicável. Isso nunca iria mudar, ele estava desesperado. Os olhos ficaram inchados de águas, e ele somente saiu do banheiro três horas depois, quando o sinal de voltar para casa bateu. A professora não tinha percebido que ele tinha estado no banheiro, nem seus colegas, nem ninguém. Ele viu a mulher dos seus sonhos, aquela que apareceria no final do filme dizendo que tudo era mentira, que o João era um idiota, e que ela o amava, conversando com uma amiga. Sem dúvida nenhuma, o garoto tinha um plano. Ele foi por detrás dos armários tentando enxergar, mas ele somente conseguiu escutar o que as duas meninas falavam:

-Porque eu não posso convidar o menino no fundo da sala?- Disse a mulher dos seus sonhos, também conhecida como Sophia.

-Você não percebe que o João termina com você se ele aparecer? Além disso, ele não fala uma palavra, ele é ridículo. Não o quero no nosso grupo. Ele não vai estar no piquenique. Ele é estranho demais, ele é feio. Imagina só se nós o chamaríamos. Você não quer que seu aniversário seja um fracasso, certo? Imagina se alguém virá se ele for à festa, você sabe como esses rumores se espalham rapidamente. E o João? É arriscado demais.

-Tudo bem, você está certa, amiga. Quanto trabalho por nada. E o amigo bonitinho do João, ele vai à festa? Acho que você dois combinam.

Ele estava atrás do armário chorando de novo; para uma criança, ele chorava mais do que deveria. Ele lembra da promessa que fez a si mesmo; um dia ele faria crianças rirem; humanos que já não aprenderam a sorrir a existir de novo; essa seria sua tarefa; um homem cumpre suas promessas. Quando olho para o nariz vermelho, em cima da estante algo bom bate nessa bomba inútil de sangue, as veias parecem algo melhor. Elas parecem às linhas que cruzam até nossa alma, se é que existe alguma coisa além do nosso corpo como qualquer cético ousaria dizer. As veias parecem ruas que vão se enchendo de gente, se acumulando de pessoas para assistir o sangue passar; será que isso é o amor? Ou será que somente são nossas ilusões querendo tirar o melhor de nós. Existem momentos que perguntas não devem ser respondidas, e sim deixadas num canto escuro onde elas param de existir.

Ele não agüentava mais chorar. Nem ficar calado. O mundo parecia opressor demais, forte demais em matá-lo e crianças não deveriam sentir esse tipo de pressão. O que acontece com você mesmo aos doze anos pode influenciar seu comportamento pelo resto da vida: Freud mesmo nos disse que os traumas da nossa infância talvez nunca deixem nossa mente, por mais que tentemos apagá-los. A criança lembra de ter imaginado pessoas se divertindo no parque, ao redor de lanches e bolos, João e a menina dos seus sonhos de mãos dadas. Sua imaginação seria mais cruel que qualquer evento de verdade, nada no mundo poderia superar aquela imagem perfeita do que foi aquele aniversário, nem a mais mirabolante festa do universo conseguiria ganhar.

O menino viu três brutamontes conversando e gritando um com o outro:

-Isso simplesmente não funciona, seu idiota. Meu irmão vai nos matar se não dermos lucros rápidos. Vocês não conseguem manter as drogas bem guardadas? Vocês são um bando de inúteis.

Os dois brutamontes, um loiro alto magrelo e um imenso moreno, ficaram de cabeça baixa. Eles não poderiam ir contra o líder de uma das maiores gangues na cidade, ninguém seria louco a esse ponto. Somente um outro seria capaz de desafiar até o mais terrível dos sanguinários, o que nunca é um bom plano. O garoto disse timidamente, abrindo a boca pela primeira vez em algum tempo:

- É fácil manter essas drogas em boas condições. Vocês têm que usar alguns componentes químicos, que são fáceis de roubar do laboratório de química, e se vocês misturarem com outras coisas, vocês vão poder dar a ilusão de ter mais, gastando menos drogas; ganhando mais dinheiro. Além disso, vocês têm que conseguir mapear onde vender, e quem assustar para dominar mais áreas. É fácil, somente existe um número limitado de escolas particulares com bom dinheiro para comprar, é fácil. Querem que eu explique?

O brutamonte chefe, que tinha traços grosseiros, sorriu e disse:

- Eu acho que poderíamos aproveitar alguém como você. Você é bom em calculo e essas coisas?

- O melhor da sala, e da escola se duvidar.

- Ótimo, o que você acha de trabalhar comigo? Sempre vai ter bebidas e pessoas ao seu redor. Não duvide disso. Qualquer pessoa que te fizer chorar morre. O que acha?

Ele viu os olhos inchados do garoto, ele era uma presa fácil. Ele tinha aceitado o que ele havia dito. Antes de ouvir a conversa das meninas, ele nunca teria aceitado. No estado em que ele se encontrava depois da conversa, ele teria aceitado qualquer coisa. Um tiro no meio da cabeça, ele teria com bom grado falado sim. Gritado sim. Por favor, eu só não quero estar sozinho de novo, seu chefe. Vamos. Eu não estou totalmente ligado aqui, médico. Me aceite, menina dos meus sonhos. Eu tenho só doze anos. Eu não deveria sentir tantas dores, eu deveria poder dormir.

O que aconteceu naqueles meses posteriores é um mistério para sua memória, ele lembra que houve violência e muito dinheiro. Qualquer pessoa que mexia com ele, aparecia sangrando e machucado. Ele tinha uma proteção sobre sua cabeça. Os três brutamontes viraram seus melhores amigos, enquanto ele mantivesse a parte do acordo: ele estudou os componentes que se misturava com a droga, a formar de se manter segura na própria escola e principalmente mapeou as escolas e turnos de venda. O negócio nunca prosperou tão bem; a tristeza alimenta o dinheiro desde o nascimento do capitalismo. A maioria de indústrias de hoje em dia tem sua forma e estrutura banhada de dinheiro nazista, ou vocês tem alguma dúvida sobre isso? A morte de milhões de pessoas alimenta esse monstro todo dia, desde o nazismo até os dias de hoje.

O menino andou até a biblioteca, lugar que ele nunca ia há meses. Desde que ele começou a planejar e ajudar os brutamontes, não havia mais tempo para sentar e ficar lendo por horas; hábito cultivado desde a mais terna infância. Os livros diziam a ele que ele não ficaria sozinho, que no final sempre havia uma solução ou um final feliz. Se não havia final feliz, era porque a história não tinha terminado. A bibliotecária sentou ao seu lado. A mulher cheirava a mofo, mas tinha sido sua única companheira por anos:

- Você não está normal, seus olhos estão vermelhos. O que está acontecendo? Você está cheio de machucados, eu estou preocupada.

-Eu não estou no lugar certo.

-Você é melhor que isso, nem precisava me dizer. Você não pertence a esse mundo. Ele não é seu. Você pertence a esse lugar. Nem precisa me contar, eu já sei de tudo. Eu vi o que você faz os livros de química que alugou. E você percebeu que você falou pela primeira vez comigo? Já faz dois anos que você freqüenta essa biblioteca, e você nunca falou. Nenhuma palavra. Você ganhou coragem.

Ela o levou até a seção de filosofia; milhões de homens tentando achar o sentido da vida num lugar; ele conseguia imaginar eles sentados conversando um com o outro, até chegar a conclusão nenhuma. Ele era aquele lugar, aquele homem gritando no meio do tribunal que não era justo, ele iria morrer, mas nunca aceitar que a dúvida era algo ruim. A dúvida era a vida para aqueles homens. O garoto riu. Pela primeira vez em anos.

Os três brutamontes não acreditavam o que estavam ouvindo:

-Eu vou embora, nunca mais vocês vão me ver. Eu estou fora. Acabado. Larguei.

-Considere-se morte, acabado. Ninguém larga o grupo. Ninguém. - O chefe o lembrou que se entrava vivo e só se saia morto.

Toda noite antes de dormir, seu celular tocava. Era uma ameaça de morte. Por exatos três meses, toda madrugada ele era ameaçado pelo irmão do brutamonte. Ele iria morrer, ele sabia demais. No começo, ele não acreditou. A realidade negou suas expectativas mais uma vez, ele era perseguido pela escola. Várias vezes, ele foi perseguido e espancado até desmaiar. Ele lutava bravamente, ninguém saia do seu campo de visão sem sangrar. Ele lutava para existir, e talvez essa seja a mais nobre motivação que a humanidade já foi capaz de criar. Ele lembra do punho dolorido, dos ossos quebrados, do olho roxo. Ele lembra de cada gota de sangue que escorria do seu corpo; essas cenas se repetiam por noventa dias. Ele nunca saia sozinho, andava na rua. Seu pai atendeu ao telefone uma vez, e quando ele percebeu tinham carros de polícia, ele estava no hospital. Ele tinha quase apanhado até o outro lado, e seu pai acionou um dos seus melhores amigos que era delegado. Tudo estava bem agora, ele iria viver. Ele lutou por existir, era o direito dele. Ele havia conquistado. Seu pai o agarrou como nunca antes tinha demonstrado, e falava que ele não iria morrer. Obrigado.

Ontem esqueceram de me ligar me chamando para um piquenique, eu pensei que essa histórica nunca mais atacaria a minha mente; ele surgiu com cada cena dela viva na memória. A menina que não me quis, a violência, o desespero de achar que iria morrer. A vontade de lutar somente para existir. Meus amigos não eram culpados, foi um esquecimento sem importância, algo num dia-a-dia atarefado demais. O problema foi lembrar da história, e que de novo eu era o garoto sozinho chorando no banheiro perdido numa solidão de um outro que nunca seria igual às pessoas ao seu redor.

Uma renomada jornalista ao perguntar da sua carreira, desligou o microfone e tentou entender de onde ele tinha tirado a idéia do ódio ao outro e a história da repressão política. Ele checou se o gravador estava mesmo desligado, e disse sorrindo:

-Eu sou uma farsa, o que você vê aqui não é nada. Eu me adeqüei ao meu redor, criei livros e livros na minha cabeça. Estudei até perder a noção do tempo e espaço. Amei cada segundo da minha solidão. Criei mundos imaginários e teorias mirabolantes para explicar absolutamente nada, mas isso não muda o que está escrito: eu sou outro, num lugar em que o outro é morte, perseguido e executado, eu sou aquele que fingi para se adequar nos moldes, mas sabendo que o mundo inteiro é morte. No fundo, eu sou um garoto a quarta serie chorando num banheiro vazio, sem ninguém perceber, e que não vai sair de dentro daquele lugar. Porque ele sabe, e não somente acha, que o outro é morto pelo mundo; que a liberdade só vem de lutar por existir; de sangrar até que você não sinta seu punho, e seu corpo inteiro esteja doendo, porque você exigi o direito de existir.

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