Set.

Ele não entendia porque tinha sido colocado naquela sala. Ele sangrava bastante, o homem que o seqüestrou tinha sido forte demais. O homem que o buscou usava graves roupas pretas que formava uma imagem que lembra os piores monstros que nos tiram o sono. Ele tinha uma equipe enorme fora daquela sala pequena os assistindo. O que o homem não conseguia entender era porque os formatos do rosto dos homens fora da sala lembravam ratos e todos pareciam exatamente iguais. Ele pensou que estava tendo um sonho: o homem de roupas negras o seqüestrando e o exercito de homens ratos o olhando por detrás de um vidro.

Dois homens ratos sentavam na sala àquela hora bebendo seu café e conversando informalmente:

- O chefe foi buscar esse pessoalmente?- Disse o homem rato menor que lembrava um pequeno roedor com seus dois imensos dentes e orelhas pontudas.

-Foi, e isso me assusta também. Lembra da última vez que ele trouxe aquele ditador da Alemanha e passou a noite o convencendo de tirar sua própria vida?- Disse o homem rato maior que lembrava um porquinho da índia de tão gordo que ele era.

-Isso não é nada, nunca vou esquecer o dia que aquele pequeno imperador francês veio aqui dizendo que ia se matar na pequena ilha. E o chefe conseguiu o convencer de que ele era um deus, e que devia beber dez vezes o veneno normal. Isso salvou a vida daquele idiota.

-Mas esse homem não tem nada demais. Porque diabos o chefe resolveu pegá-lo pessoalmente?

- Você já viu o arquivo? Ele está aqui somente para tirar uma verdade do peito daquele homem. Uma missão de rotina, nunca demora muito tempo. Mesmo assim, o chefe o trouxe sangrando, ele nunca faz isso.

Uma voz saiu do interfone, e por um momento os dois homens ratos gelaram: o homem de casaco preto tinha dito que iria começar, e que os dois malditos ratos deveriam ficar calados se eles não queriam sua pena aumentada. Os dois se calaram, eles sabiam que trabalhar com aquele homem era assustador, mas ele pelo menos era justo. Isso não podia ser dito de todo trabalho forçado.

O homem tirou seu casaco preto, ficando somente com uma camiseta branca, calça social preta acompanhado de suspensórios e dois sapatos bem formais. Ele era bem alto e forte, tinha olhos negros e era totalmente careca. Tinha uma brancura fantasmagórica. O homem seqüestrado estava amarrado numa cadeira no meio da sala, tentando se desamarrar com todas suas forças. O homem careca andou lentamente até a cadeira como numa cena de um filme de detetives bem antigos, e disse:

- Primeiro, temos que acabar com a ilusão de que você pode fugir, e meu nome é Set, prazer em te conhecer. Você não poderá dizer o mesmo sobre mim - Ele tirou as cordas do homem seqüestrado.

Sem pensar muito, o homem seqüestrado se colocou em posição de combate. Em um minuto, tudo aconteceu muito rápido. Ele tentou dar um soco, e Set rindo o imobilizou até que gritou de tanta dor. Set falou:

-A educação nos diz que devemos nos apresentar quando alguém nos diz seu nome.

- Meu nome é Ninguém. Meus amigos me chamam de Nin.

- Engraçadinho, entendi. - Set começou a torcer o braço dele até ouvir um estalo que significava que o osso estava quebrado.

- Meu nome é Calvin. - Gritou chorando de tanta dor.

- Ótimo, Calvin. Agora podemos começar.

- No meu arquivo não dizia meu nome? Você acabou de quebrar meu braço de graça?

- Você tentou ser engraçadinho, eu não gostei disso. Você tem que entender, você está num lugar onde o tempo não passa. Estamos num lugar que existe fora de qualquer mundo. Ele foi encontrado dessa forma e até hoje é usado somente por mim, para influenciar no mundo. Eu tenho milhões de anos. - Disse rindo Set.

O que diabos estava acontecendo? Ele tinha acordado, saído para o trabalho e de repente estava preso num lugar onde o tempo não existe com um homem que muito lembrava um demônio. Set ria bastante depois de ter quebrado seu braço. Ele não entendia o que queriam dele, tudo que ele conseguia pensar era que ele finalmente depois da morte da sua mulher tinha conseguido sentir algo por uma mulher. Ela passava todo dia na frente do seu trabalho, quando ele sentava num banco para comer seu almoço. Ela era simplesmente linda. Ele prometeu a si mesmo nunca falar com ela, e nunca nem ao menos admitir que sentia algo. Quando ela passava, seu coração queria sair do peito e tirar a bela moça para uma dança. Depois da sua mulher morta, ele havia decidido não apostar em romances, ou em grandes histórias. No final das contas, grandes histórias têm sempre grandes finais trágicos. Calvin sorriu pensando que talvez ele quisesse informações sobre seu trabalho e disse:

- Bem, eu te conto tudo sobre meu trabalho. Não se preocupe. Eu não quero esconder nada. Eu sei que várias pessoas podem estar desviando dinheiro. Não tenho problema nenhum em dar nomes.

Set andou silenciosamente até Calvin que se encontrava em pé e gritou com uma voz que tomou conta da pequena sala branca:

-Seu maldito idiota, Eu convenci o próprio Stálin a atacar Hitler. Quem você acha que escreveu o discurso de Stalin no dia que Hitler quebrou o trato de não-agressão, ou melhor, quem você acha que deu a idéia do tratado de não-agressão? Eu não gosto do comunismo, mas sinceramente o exercito vermelho era a única chance do mundo. Você acha que eu me interessaria pelo seu trabalho pequeno? Seu idiota.

Set deu um soco no meio do rosto de Calvin que caiu sangrando no chão:

- O que você quer então?

- O que eu quero é bem simples. Você precisa me contar que gosta da mulher que passa pelo seu trabalho. Dizer que seu coração salta toda vez que ela passa. Só isso.

- Que mulher? Eu não sinto nada.

-Eu acabei de quebrar seu nariz e braço. E você ainda quer negar?

- Eu prefiro um tiro no meio da testa a admitir o que você está me pedindo.

-Você sabe que isso pode ser providenciado, certo? É só admitir que você gosta de alguém. Qual a porcaria do problema?

- Eu não vou admitir. Você está me escutando? Eu prometi a mim mesmo. Você já ouviu falar dos samurais? Uma promessa a si mesmo era mais forte que qualquer outra coisa. Eu prefiro que você me mate.

- Idiota. É só me dizer que gosta de alguém.

Houve um silêncio na sala. Set e Calvin ficaram parados no tempo. Calvin queria admitir, mas ele não podia. Ele não devia admitir. Ele lembrou como tudo aconteceu: ele a amava, ela foi embora. Isso acontecia. Mais vezes do que ele gostava de admitir. Ele se lembrava do gosto de cigarros, e de tantas coisas bestas que o irritavam ao longo do dia. Ele se perguntou se a vida seria somente momentos aleatórios e imprevisíveis de conexões absurdas sem nenhuma lógica. Ele não seria assim. Ele fugiria de qualquer queda platônica. Ele negaria até a morte. O que sinceramente parecia estar prestes a chegar.

Set foi embora da sala. Calvin sentou na única cadeira que se encontrava no meio da sala, com as cordas soltas ainda no chão. Set saiu até a sala com os dois homens ratos. Eles começaram a puxar o saco do chefe:

- Chefe, que belo trabalho! Aquele soco e o braço quebrado. - Disse o menor.

-Genial!- Disse o maior.

-Parem de puxar a porcaria do meu saco, vocês viram que ele não vai quebrar? É algo tão absurdamente idiota.

-Chefe, mas porque você pegou esse trabalho?- Os dois perguntaram ao mesmo tempo.

-Não é do seu interesse- Os dois ficaram calados, o olhar de Set teria os colocado no inferno em um segundo caso fosse do seu interesse.

Calvin cuspia sangue, ele estava indignado com aquela situação. Ele se lembra de todas as tardes olhando ela passar, que maravilha ao coração acreditar naquela bela ilusão. Quem tinha o direito de dizer que aquilo era uma ilusão? Quem entre nós pode ter tanta certeza da realidade a ponto de dar um basta na imaginação de um pobre homem? Ele pensava em todos seus amigos, no ridículo da situação. Ele estava sendo torturado porque não queria admitir um amor, a idéia em si parecia bem idiota. Ele sabia que Set não estava brincando, ele parecia estar determinado a tirar a informação a todo custo.

Set entrou com uma maquina que lembrava um ressuscitador de hospitais. Calvin não gostava de pensar o que Set pensava em fazer com aquilo. Infelizmente, era uma realidade que iria atingi-lo diretamente na cara, ou em outros lugares que sinceramente são simplesmente desagradáveis. Set começou a tortura lentamente até atingir lugares bem sensíveis. Calvin não agüentaria mais, ele precisava gritar. Num misto de sangue, dor e desesperança ele começou a sibilar algumas palavras como uma reza, ou um sutra antigo de algum tempo budista:

- Não existe destino. Caídos aos seus próprios pés. Homens choram.

- Não existe destino. Caídos aos seus próprios pés. Homens morrem.

- Não existe destino. Caídos no próprio rio Estinge. Homens quebram.

Set levantou, ele parecia extremamente irritado. Ele estava vermelho na sua face, seu imenso corpo começava a desferir um golpe atrás do outro no pobre Calvin. Ele não tinha limites, cada vez mais Calvin começava a decair. Set começou a gritar com uma voz que encheu o lugar inteiro de ódio, parecia que a cor vermelha se espalhava nas paredes com uma intensidade colérica:

- Seu maldito babaca. Não fuja desse momento. Aceite que você a ama. Pare de arranjar desculpas na sua filosofia ou religião, elas não vão te salvar. Aceite que quando ela passa, o mundo inteiro se ilumina e começa a cantar. Os pássaros como nas músicas cantadas na beira da cama aparecem para te alegrar; até o mendigo na esquina parece acenar para você. Seu coração quer ser tirado num samba sem fim, nem começo. Enquanto você não admitir isso, você morre. Não importa se Hades vai tomar seu coração, e jogá-lo no fundo do Rio Estinge. Você não entende? Destino é a forma como homens fracos reconhecem sua incapacidade. É a ilusão de que não temos controle sobre aquilo que somos e acontece conosco. Você é melhor que isso.

Calvin levantou da cadeira solitária. A sala começou a tomar uma cor de azul de mar. Ele cuspiu no rosto de Set, e disse num tom de triunfo:

- Eu a amo, seu maldito idiota. Isso não é da sua conta, nem de ninguém.

Nessa hora Set permitiu qye o soco de Calvin o acertasse no meio da barriga, com um sorriso. Calvin acordou na cama da sua casa coberto de machucados e marcas de tortura. Ele não sabia o que fazer naquele dia, ele só sabia que iria à praça de novo. Escutar um samba sem fim dentro do seu corpo. Agora, ele já não tinha uma promessa de não falar com ela. Ele veria o que iria acontecer. Afinal, depois de toda aquela tortura, falar com uma mulher parecia uma tarefa no mínimo fácil.

Set começou a cantar sua música favorita, um jazz bem antigo. Os dois homens-ratos estavam assustados com o comportamento do seu chefe. Eles, ao mesmo tempo, perguntaram:

-E agora chefe?

- Eu estou aposentado, crianças.

Uma bela mulher entrou na sala, ela vestia um longo vestido preto. Tinha cabelos pretos e olhos tremendamente claros. Ela deu um beijo na sua testa, e ele sorriu como que dizendo adeus. Ele tirou sua camiseta social, e embaixo dela jazia uma imensa cicatriz. Os homens-ratos começaram a pensar se Set já tinha sido humano, se aquela cicatriz era sua morte. A cicatriz foi desaparecendo aos poucos, e Set sumiu no vazio daquele lugar. Para nunca mais voltar.

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