Tabuleiro.

Dois homens velhos jogavam xadrez no banco da praça, um deles usa roupas brancas e o outro usa roupas com tons escuros. Eles estão completamente envolvidos no jogo, não percebem as pessoas passando ao seu redor, ou mesmo o cachorro latindo na proximidade. Eles se encaram como inimigos eternos: nos mitos, a busca de um herói ia contra um deus, contra um inimigo; alguém que causasse completa destruição ao seu ser:

-Então, eu quero aumentar as apostas- Disse o homem de roupa escura.

- O que vai ser? Cansou de perder? Só existem infinitas possibilidades de você ser derrotado.

- Dessa vez tenho um plano, que tal o mundo inteiro?

- Qual as regras?

- Nós não influenciamos diretamente, eles escolhem.

-Gosto da idéia deles escolherem, o que você tem em mente?

- Total liberdade, nós não atrapalhamos, só podemos influenciar. Eles no final escolhem para onde vão.

-Ótimo, e qual a aposta final?

-Suas almas.

- O problema é que muitos nem acreditam em você.

- Mas eu acredito neles.

-E se você tiver errado, e eles serem naturalmente bons?

- Você está brincando, certo? Vingança, ódio, repulsa; essa partida já é minha. Eles andam um ao redor do outro sem se encontrarem, são malucos de serem assim. Eles são tão meus, que você chega a tremer, xeque-mate!

- Duvido.

-O quê?

-Duvido, eles vão acabar retornando, eles vão acabar sendo perdoados.

- Eles não querem ser perdoados, eles não querem nada. Não quero que você se iluda, pai. Eu não voltei, e eles não vão voltar.

- E o amor?

- O amor morreu com as propagandas de cerveja, com relacionamentos de conveniência, com pessoas que só pensam em si mesmas. Não existe mais isso que você está falando no tabuleiro, só vejo peças prontas para serem movidas, manipuladas e destruídas.

- Temos que ter fé.

- Se é só fé que você tem, então já ganhei de lavada.

-Que tal um trato?

- O que?

-Eles decidem viver no começo da sua existência, depois de verem toda sua vida. Eles têm a opção de nascer ou não. Se eles optarem por nascer, suas memórias são apagadas.

-Justo, mas no final da vida eles têm a escolha entre o mundo existir ou não. Se eles terminarem com o mundo, eu ganho.

-Feito.

- Velho, só queria dizer que admiro sua persistência em homens que não valem nada.

-Seu erro estar em pensar nisso, filho.

O velho sorriu para o seu filho, e eles se olharam por um momento de tensão e pareciam que iam se atacar, ao invés disso se abraçaram. O tabuleiro se tornou um globo imenso coberto de pequenas sombras de luz branca, onde cada era diferente da outra, mas igual. Eles começaram a escrever linhas tortas e desenhos por todo o pequeno globo, nos países, nas almas, era assustador a rapidez com que eles trabalhavam. Segundo por segundo, a máquina começou a girar e o globo ficou no tamanho real girando ao redor de outro globo amarelo, que nós tão espertamente chamamos de sol.

O dia chovia forte, e os prédios pareciam gritar de silêncio; não havia uma pessoa em lugar nenhum. O homem estava no topo de um morro íngreme reclamando para o céu quem havia sido o deus cruel que havia decidido sobre sua existência: se ele soubesse de tudo, não haveria nem decidido viver. Ele tirou um cigarro da cartela, mas naquela chuva estava impossível de acender qualquer coisa. Ele tentou se esconder em qualquer lugar naquela proximidade, e encontrou uma árvore da sua infância; um lugar onde ele corria quando estava sendo perseguido por figuras sombrias vestidas de sorrisos.

O homem de roupas brancas aparece na árvore e a coloca em fogo, assustando o pobre homem, que grita de medo:

-Então é isso, você realmente está me dizendo que deus gosta de pregar peças?

- Você está brincando, o que você achou que era o dilúvio? Eu fazendo uma piada prática que ninguém entendeu.

- Eu não acho justo que as coisas foram decididas por você, afinal eu não escolhi existir.

-Bem, ai você se engana, você decidiu viver. O problema foi que tive que apagar sua mente.

-Por quê?

- Imagina se você soubesse como tudo ia acabar, perderia toda graça. Eu estava te fazendo um grande favor.

- Obrigado, hein, amigão. - Disse o homem, enquanto o deus de roupas brancas virou um gigante, e os raios começaram a descer perto daquele homem que não parava de choramingar.

- Ok, foi divertido, eu admito, mas agora parei. - Voltando ao tamanho normal.

-Bem, se você já se divertiu, eu posso ir embora?

- Não sem antes você admitir que sua vida é boa.

- Você está falando sério?

- O que você quer dizer? As drogas, as crises existências, perdendo a mulher da sua vida. Largue de ser um chorão, não fica bem em você.

-Bem, tenho que ir embora, se cuide garoto. E ah, diga um oi ao meu filho quando você o encontrar, acho que ele vai te adorar.

O homem continuou vivendo sua vida, mas nunca se esqueceu daquele velho estranho que apareceu na sua frente. Ele ignorou a perda da única mulher que ele um dia tinha amado, e passou o resto da vida perdendo pessoas, lugares e sentimentos. Ele não conseguia entender a desordem do mundo ao seu redor; porque no meio de tudo não havia uma razão, uma ordem, ou pelo menos alguém dizendo algo interessante. Ele tinha um asco por quase todo iluminado ou próximo gênio do mundo: afinal parecia que as respostas não estavam ali esperando prontas e felizes. Elas tinham que ser conquistadas. Bem, ele tentou. E falhou miseravelmente. Mesmo. A última coisa que ele lembra de ter pensando antes da sua morte numa cama de hospital foi “ A iluminação espiritual me trouxe somente uma coisa: eu quero uma cerveja gelada no final de um dia chato”, ele não entendeu porque anos de meditação tinha acabado nessa conclusão simples. Ele morreu sozinho, sem parentes ao redor, infeliz com seu trabalho de burocracia num setor qualquer, e a mulher com quem ele se casou rapidamente encontrou felicidade com outra pessoa logo após sua morte por infarto aos sessenta anos de idade. O que foi mais impressionante em toda sua morte foi à simplicidade como ele foi embora, parecia que ele já tinha deixado esse mundo anos antes, e seu desespero que o perseguiu na vida invés de sumir, aumentou até os céus.

Um homem de roupas negras, com um grande bigode e um chapéu de mágico entrou numa sala totalmente branca, e o homem morto esperava pacientemente:

- Você demorou viu, faz dias que estou preso nessa sala desesperadora.

-Bem, eu venho te fazer uma pergunta. Depois da sua vida desesperadora e sem graça, você deseja que o mundo continue existindo? Vamos: desgraças, morte, ódio e nada mudando. O que você me diz, rapaz?

- Seu pai mandou um oi.

- Aquele idiota falou com você?

-Sim.

-Ele deve ter gostado de você. Bem, eu quero que você decida logo.

O homem morto começou a sorrir: sua vida e as pessoas nela ligada apareceram na sua mente e toda a história foi revelada. E ele começou a sorrir bastante:

-Então era isso, danado, a mulher me amava também.

- Ah, não me diga que o velho usou o truque da revelação total.

-Sim, ela me largou porque estava grávida e eu era viciado em drogas. Ela me amava, ela deu um lugar para a nossa filha. Ela é extraordinária, a mulher que eu amo!

- Você está brincando certo? Outro homem criou sua filha e fez sexo com a sua mulher!

- Seu idiota, você não está entendendo, certo? Ela me amava também! Só não agüentava as minhas crises, ela queria nossa filha bem. Eu teria feito o mesmo. Maldita espertinha.

-Então, o mundo continua ou não?

- Claro! Você viu o que minha filha vai se tornar? Ela vai quebrar esse mundo inteiro, virar do avesso, transformar em algo bonito e feio. Cara, ela vai detonar. Desculpa, eu sei que não deveria estar dizendo isso para o diabo, mas minha filha vai fundar algo que vai jogar luz nas pessoas, e no coração e ela...

Ele começou a chorar de felicidade, e gritou “Sim, sim e sim, um milhão de vezes sim!”. Ele desapareceu como num toque de mágica. O velho com as roupas claras apareceu na sala branca:

-Então, qual é o placar? Vinte bilhões a um?

-Sim, está a um.

O homem de roupas brancas foi até o filho, e lhe deu um abraço. Naquele momento as linhas no globo se alastraram, e por um momento redes de pessoas se conectaram invés de se quebrarem: o velho disse em palavras num tom de voz baixo, a esperança é que nem aquela besteira que a gente esconde no armário, ela sempre volta filho, ela é demoníaca, e sinceramente não a vejo indo embora tão cedo. Por isso, não sairemos do empate: a desgraça consumida no dia-a-dia da mediocridade vai se encontrar na barreira do extraordinário, e vamos morrer nós dois juntos na imaginação de alguém que nem nasceu. O tabuleiro está aberto, mas não é nossa vez de jogar.

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