- É uma capacidade- respondeu Narciso, pausadamente- de perceber o caráter e o destino dos homens; não só o meu próprio destino, como o dos outros também. Esta faculdade obriga-me a servir os outros, no sentido de dominá-los. Se eu não tivesse nascido para a vida monacal, teria que ser juiz ou homem de estado.

-É bem possível- Assentiu o abade.- Você confirmou essa sua capacidade de conhecer os homens e seu destino? Tem alguns exemplos?

- Você poderia dizer o que achar a meu respeito, seu abade Daniel?

- É bem pouco o que sei sobre vós, venerável padre. Sei que sois um servo de Deus que preferiria cuidar de cabras ou fazer soar o sininho de uma ermida humilde e ouvir confissão dos camponeses a dirigir um grande convento. Sei que dedicais um amor todo especial à Santa Mãe de Deus e que quase todas as vossas preces são dirigidas a ela. Rezais com a intenção de que o grego e outros assuntos estudados aqui neste convento não venham a ser motivo de confusão e de perigo para as almas que vos foram confiadas. Ás vezes também orais para que vossa paciência com o vice-prior não se esgote. Rogais, ás vezes, para que vosso fim de vida seja tranqüilo. E, acredito, vosso fim de vida será tranqüilo.

- Você é um sonhador e tem visões- disse o senhor grisalho com amabilidade.- Mas mesmo as visões piedosas e agradáveis podem enganar; não se fie nelas, da mesma maneira que eu também não o faço. Você pode ver, meu irmão sonhador, o que penso a respeito disso tudo no fundo do meu coração?

- Posso ver, padre, que pensais favoravelmente a esse respeito. Pensais o seguinte: " Este jovem aluno é um tanto temerário; tem visões; talvez tenha meditado demais. Eu poderia, quem sabe, dar-lhe uma penitência- que, aliás, não o prejudicaria. Mas a penitência que lhe será importa eu a tomaria também para mim". É nisto que estais pensando.

O abade levantou-se. Sorrindo, fez um gesto dispensando o noviço.

- Está bem-disse. - Não leve muito a sério as suas visões meu jovem irmão. Deus exige de nós alguma coisa a mais, além das visões. Suponhamos que você tenha lisonjeado um velho prometendo-lhe uma morte tranqüila. Suponhamos que, por um momento, o velho tenha ficado feliz ao ouvir essa promessa. Agora basta.

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