Adão e Eva.

Eu irei escrever essa história na primeira pessoa. Odeio usar um narrador tão próximo da história, as palavras ficam clichês e parece tão pessoal. Infelizmente tenho que escrever dessa forma, já que dessa vez não preciso aumentar os acontecimentos, por si mesmo eles já representam mais do que eu poderia criar na ficção. Por isso lutei tanto em escrever essa história, nada do que eu possa dizer aqui vai conseguir explicar o que me aconteceu, mas colocarei minha esperança que as palavras digam o que eu sou inapto a dizer olhando no seu rosto. Não se engane: esse conto existe por você.

Vou começar numa parte que é a metade, a minha ida ao centro cultural. Eu fui à mostra de cinema, com esperança de poder te ver, mas você não foi naquele dia. Entrei na livraria, provavelmente o lugar que me sinto mais confortável no mundo. Olhei para os livros de sempre, e o rosto deles não havia mudado. Algo me chamou a atenção, algo pequeno e que parecia não ter significado. Duas crianças, uma menina e um menino, por volta dos cinco anos de idade liam um livro contando a história do Adão e Eva. Eu fiquei em silêncio, tentei ouvir as palavras sendo ditas por tais crianças:

-O Adão amava a Eva. – Disse o garoto sorridente.

-Porque a cobra a enganou?- A garota disse com olhos tristonhos.

- Ela queria saber mais coisa.

-O Adão também queria saber mais coisa?

- Não, ele queria andar com a Eva nos jardins.

-Acaba triste?- Ela disse quase chorando.

-Acaba com Eva e Adão juntos.

- Triste?

- Juntos- Disse o garoto com um ar de triunfo.

Não parecia que o juntos tinha convencido a pequena menina, mas o garoto sorria de orelha para orelha. Os pais vieram pegar as crianças, enquanto eu olhava incrédulo para a cena que tinha passado pelos meus olhos. Não conseguia acreditar no que eles disseram, simplesmente fez sentido em mim aquelas palavras. Nunca se poderia saber se eles realmente ficaram tristes, mas no final eles estavam juntos, e isso era o que parecia importar. A incerteza da garota era compensada pela postura do menino, como Adão e Eva na porta do paraíso. Não conseguia tirar a cena, e muito menos você da minha cabeça.

Eu vi o filme, que me afetou bastante. O surpreendente é que uma mulher que parecia com você sentou do meu lado, me olhando com simpatia. Conhecíamos-nos, e conversamos um pouco, o que foi bem agradável, mas eu continuava olhando para ela e vendo você, as duas crianças e Adão e Eva. Voltei para casa cantando para qualquer um que se desse o trabalho de ouvir:

- Reconheço aquele olhar, e o que havia em voltar, mas se é tão familair, quero essa resposta, quem mandou esse anjo, com quem sonhei? Diz para mim...

Não posso falar da nossa discussão no banco do bloco ainda, por mais que queira. Tenho que falar do sentido antes, e isso demanda algum tempo, mas que será compensado no final. Para isso, vou falar de uma conversa que tive com meu professor de violão há alguns anos átras:

- Humberto, nunca entendi direito como você largou a faculdade sem piscar por alguém. Você é tão sabio referente a pessoas, a gente, a saber o que estão sentindo.

- Eu tinha certeza- Disse com um olhar firme.

-Certeza do que?

-Que era ela que eu tinha que passar meus dias.

- Esse troço de romantismo é bem bonito, eu gosto, mas não é verdade, você sabe disso.

- A verdade é o que você acredita. Eu tive certeza no momento que a vi, e mais que isso. Quando eu passei o tempo com ela, ela me mostrou que eu estava certo. Todas as vezes, eu tinha certeza. Quando ela acordava do meu lado sem maquiagem, quando ela quebrava as imagens ideais que eu tinha dela, eu tinha certeza.

- Eu nunca vou ter certeza- Disse como quem não queria acreditar nisso.

- Você terá a certeza, ela vai te invadir aos poucos, e quando perceber vai fazer sentido.

- Eu tenho que aceitar que vai fazer sentido?

- É, você tem que acreditar no que eu to te dizendo.

- Mas eu não sou bom em acreditar.

- Você é engraçado, acha que os seus livros vão te proteger de sofrer, mas eles vão te jogar mais fundo no sentido do que os outros.

- Talvez você esteja certo.

- Eu sei que estou.- Disse arrogantemente.

Quando eu te vi pela primeira vez no banco da faculdade, eu tive uma iluminação diferente. Algo me invadiu, e começou a me corroer por dentro, como se eu tivesse perdido controle de mim mesmo. Eu não conseguia entender exatamente porque eu tinha que falar com você, mas eu tinha certeza disso. Eu lembrei de uma cena que ficou fotografada na minha cabeça: a morte do meu avô.

Meu avõ era um homem sorridente, ele fazia do riso o seu tempo do jeito corrido que as pessoas levavam a vida. Ele sempre tinha alguma desculpa para rir, seja uma piada, ou uma anedota sobre as vendas na mercearia que ele tinha numa pequena cidade. Minha avó era uma mulher séria, levava seus assuntos nos hospitais de cancêr com uma seriedade de juiz. Eles se conheceram num baile, e por cinquenta anos viveram juntos tudo que tinham direito, desde filhos até pagar a hipoteca da casa. Eles se davam bem, se equilibravam de alguma forma.

Quando meu avô morreu, sua despedida foi algo digno de um conto, mas o inesquecivel era a minha avó do seu lado a cada momento. Nos seus olhos tinham nada, a não ser certeza que lhe tinha sido passada por cinquenta anos de casamento, a certeza de todos os momentos que meu professor tinha falado. Meu avô nos últimos momentos não conseguia falar, depois que os amigos e familiares se despediram, sobrou somente minha avó e ele no recinto. Na noite de sua morte, os dois dormiram de mãos dadas por uma última vez. Ao sair do quarto, eu não conseguia tirar a imagem da minha cabeça, e nem consigo até hoje: os dois na cama cheia de aparelhos com mãos dadas por cima dos fios. Não existe maneira do sentido ser só uma mentira feita pelo nosso otimismo, e mesmo que seja isso, eu prefiro essa mentira que se torna verdade. Agora posso contar sobre nosso dia na praça.

Você ficou afetada com o fato que queriam me afastar de você, me contarem tudo sobre você para eu ir embora o mais rápido possível. Eu te disse que nada havia mudado, que nada que podia me ser dito por outro sem ser você faria qualquer diferença. Você sofria com o jeito que os outros te viam, e pediu para me ver numa comercial de uma quadra. Te vi subindo para a locadora, sem me perceber, e aproveitei para tirar um momento para te olhar: os olhos verdes triturados, a roupa combinando, o sorriso cortado no meio. Eu lhe levei para o banco de um bloco, onde estava lendo poemas sobre Adão e Eva, na praça, começamos a conversar:

- Eu quero saber tudo que lhe disseram.- Eu disse tudo da maneira mais superficial possível.

- Eu quero tudo de verdade, não mentiras leves- Então contei tudo que poderia ser dito sobre ela.

- Eu não acredito que as pessoas criam suas verdades sem olhar para os outros, e ainda transmitem. Nada que te contaram foi daquele jeito, você vai saber a minha verdade.- Ela me contou sua versão.

- Você não precisava me contar nada, não precisa se defender. A verdade dos outros não mudou a verdade que tinha de você. O que me contaram não valia nada nos meus olhos, a não ser amigos preocupados comigo.

- Então porque você não se afasta?

- Porque faz sentido.

-Porque você fica do meu lado?

- Porque eu não preciso ficar do seu lado, porque eu tenho certeza.

- Do que?

- Eu tenho certeza.

- Eu tenho medo de não aprender a viver com os outros, de só aprender na morte como a minha mãe a importância de amar os outros.- Ela disse chorando.

- Isso não vai acontecer com você, não vai.- Disse enquanto a abraçava.

- Você não tem como saber disso com certeza. – Disse tirando meus braços das suas costas.

- Eu tenho certeza.- Ela continuo a chorar.

- Sua mãe deve ter sido linda.

- Eu te mosto uma foto.- Ela tirou da bolsa uma foto de uma mulher loira com belos olhos verdes triturados.

-Você tem os olhos dela.

-Acho que só agora to começando a lidar com a morte dela.

- Antes tarde do que nunca.

- Vai ver as pessoas tão certas de achar que eu sou assim porque minha mãe morreu.

- Não ter uma mãe não te fez assim, o problema é que sem o apoio dela foi dificil ser assim do jeito que você é.

- Talvez você esteja certo.

- Ainda me disseram que você é assim porque é bonita demais, ou porque é arrogante. Não é isso, essas coisas não te determinam, eu sei disso.

- Talvez você esteja errado. Se todos acham isso, menos você. O negócio do mundo inteiro tar errado e você certo não faz sentido.

- Normalmente eu concordaria, mas dessa vez faz todo o sentido do mundo.

- Obrigado por acreditar em mim.

- Não fiz isso por pena, ou nem mesmo por amor, fiz isso porque fazia sentido. As coisas não fazem sentido para mim, mas isso faz. Eu nasci quebrado, não consigo odiar ninguém, e amo sem egoismo: me auto-sacrificando pela felicidade alheia. O meu coração é maior do que meu peito.

- Quer ver algo que minha mãe escreveu no final da vida?- Ela tirou um texto de trás da foto. Eu nunca conseguirei reproduzir as palavras finais de uma mãe para a filha, a beleza de cada paragrafo, e de toda a mensagem, mas o básico era sobre amor os outros da melhor maneira possível fazendo brilhar em si o amor por todos.

- Eu nunca conseguirei isso.- Ela começou a chorar, eu tirava as lágrimas uma por uma do seu rosto. Não foi fisico, eu queria tirar todas as lágrimas do seu rosto, da sua vida, mas eu sabia que não conseguiria por mais que quisesse no meu interno.

-Você pode aprender com a sua mãe.

- Falar do que foi para você, não vai me livrar de viver.

- Bruna, está em cada um de nós amar desse jeito. Ser como meu professor de violão que ama as pessoas, por mais idiotas que elas sejam. Ser como a sua mãe e ter a generosidade no coração. O caminho é dificil, mas é isso que temos que trilhar.

- Nós podemos brilhar, e iluminar os que nos cercam, está em cada um de nós, mas eu não sei como fazer isso. Acho que você consegue um espasmo de felicidade, um brilho fazendo as pessoas abrirem sua vida para você. É um passatempo.

- Não é um passatempo, é algo doloroso. Eu só chorei duas vezes na vida: rei leão e a morte do meu avô. Agora me encontro chorando, porque isso me dói. Ver você chorando me dói.

- O amor é deixar a outra pessoa feliz, matando seu egoismo e orgulho. O sofrimento do auto-sacrificio é mortal, mas isso que é o mais próximo do verdadeiro que podemos chegar, entende?- Continuei enfático.

- Não entendo, o mesmo ciclo se repete comigo. Todos pensam que eu sou arrogante, convencida, se afastam de mim pelo o que ouvem dos outros.

- Eu não me afastei.

- Porque você não se afastou? Você deveria se afastar.

- Porque eu tinha que ficar do seu lado. Porque você quer que eu me afaste?

- Porque você me deixa menos sozinha. Sozinha estou protegida, estou mais livre. O que tenho dentro de mim é roubado por você, você tem o poder de me queimar com o mundo, de usar contra mim o que te disse.

- A última coisa que quero fazer até o final dos meus dias é usar qualquer coisa que você disse contra você, ou contar qualquer coisa dessa dia para outros.

- Mas você pode usar.

-Mas eu não vou usar.

Nesse momento ficamos em silêncio. Banalidades nos cercavam: um cachorro pulando na minha perna, um garoto fazendo manobras num skate e casais nos observando. Ela levantou para esticar as costas, eu fiz o mesmo. Ela começou a dizer me olhando nos olhos:

- Você não tinha que encontrar duas pessoas?

- Eu tinha combinado de beber com duas amigas há trinta minutos átras.

- Vamos embora.

- Eu não quero ir embora. A quebra com o mundo real é brusca demais, voltar dessa conversa com você para outras pessoas me dói, eu não quero sair daqui pelo maior tempo possível.

- Quando eu era pequena, detestava o colégio. Entrava numa lan house, e bebia café com leite. Até hoje adoro café com leite pelo sentimento de calma que me passa. Eu sempre fui tiradas do lugares, por esses motivos, pelo o que falam de mim.

- O fato de ter acontecido uma, duas, três, quatros vezes não quer dizer que vai ser sempre assim. Eu tenho que acreditar que as coisas podem diferentes, que você pode ser feliz.

- Isso é otimismo barato, o pior tipo.

- Isso é acreditar em algo, mesmo quando tudo te diz o contrário. Você será feliz. Parte da minha doença é ver quem vai ser feliz, e você é uma delas. Eu não consigo me ler, mas aos outros sim.

- Qual é seu futuro?

- Nunca ser feliz, porque eu me auto-sacrifico pela felicidade dos outros.

- E os outros nunca se sacrificam por você, então porque você continua?

- Porque eu tenho que continuar. É uma das razões porque eu não me jogo de um prédio: um dia irei salvar vidas, e por mais que eu não seja feliz, essas vidas vão ser.

- Parece um motivo besta, e eu que não tenho motivos?

- Talvez uma foto da sua mãe com um bilhete sobre amar as pessoas, e a felicidade que podemos tirar disso?

- Talvez.

- Eu queria ter a certeza do amor como meu avó, sua mãe ou meu professor de violão. O problema é que sei que sofrerei mesmo com a certeza.

-Quando você tiver essa certeza você não vai precisar pedir a outra pessoa por amor, ou qualquer coisa do tipo.

- Esse é o problema, eu sei que vou ter certeza e não vou ficar com a pessoa que me dá essa certeza. A maior dor, a minha sindrome dom quixote, o intervalo entre a certeza que a pessoa vai me entregar, e a queda frente os moinhos. Levantar dessa queda vai ser provavelmente a coisa mais dificil que já tive que fazer.

- Eu quero que você me deixa sozinha.

- Tudo bem, to indo embora, quer que eu te deixe em algum lugar antes?

- Não agora, eu to dizendo sempre.

- Você me disse que não gosta de cobrança em relações humanas, então não me cobre tanto. Não me cobre para me separar de você, é muito para o pouco tempo que nos conhecemos.

-Me deixa em casa.

Ela entrou no meu carro. Colocou o rosto na janela, e não disse mais nenhuma palavra. Deixei ela em casa, e errei o caminho. Ela nunca vai perceber que a felicidade de ter ela do meu lado faz com que eu fique confuso com o caminho. Ela saiu do carro, para o hotel com portas grandes. Mas antes de sair, ela colocou o rosto colado no meu e disse “ obrigado”. Enquanto ela foi embora, eu disse obrigado a você, mesmo que ela não tenha escutado.

O paragrafo final vou terminar dizendo que não consigo parar de pensar nesse dia, não consigo beijar outras garota sem ver seus olhos. Eu sei que seria egoismo e orgulho da minha parte dizer que te amo, que quero te namorar todos os dias da semana mesmo que isso signifique somente mãos dadas e conversas. Por isso, eu não direi nada. Você terá de mim o amigo que precisa, não pedirei nada, não haverá nenhuma cobrança. Por mais que doa cada parte de mim não te dizer que te amo, vou dizer isso por meio de todas as minhas ações, mesmo que sejamos somente amigos. Entende? Eu não vou somente dizer aquelas coisas, eu vou agir matando meu egoismo e orgulho para que você possa ser feliz, já que você não quer de mim um namorado ou um amor. Eu vou me contentar com o que você precisa, porque a certeza de verdade não é egoista, nem orgulhosa, ela é plena no seu altruismo. No seu dar, sem pedir nada em troca. Eu vou me tornar alguém melhor, alguém que age segundo as palavras que diz, por mais que você nunca saiba, que você nunca leia esse conto, que ninguém nunca leia esse conto. Aqui declaro meu amor nunca reconhecido por você, o amor dito em ações, o amor não egóista, não orgulhoso, o amor que faz valer a pena acreditar em alguma coisa num mundo tão incerto, tão errado e tão tolo. A certeza disso é o mesmo que a certeza do meu avô, do meu professor, da sua mãe, da minha avó, das crianças conversando na livraria, de Adão e Eva.

Comentários

  1. Engraçado eu resolver voltar a ler teus contos justo hoje. Tinha esquecido como eles eram lindos. E tinha esquecido uma parte dessa tua alma romântica-incorrigível, admito.
    Não tenho o que te dizer sobre amor,porque tu claramente sabe mais que eu. inclusive, agora minha vida parece muito sem-cor depois de ler tudo isso,obrigada. UASHDU
    Ah,modelli..
    Aliás..sempre gostei de Adão e Eva.

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