O Relógio Da Torre.


O relógio da torre foi colocado com o tempo ao contrário. O maior relojoeiro do mundo perdeu seu filho para um alemão numa guerra em que as mortes fizeram até o pior nazista reconhecer a imensidão negativa da guerra. O relojoeiro queria seu tempo de volta, queria seu filho de volta. Ele queria ver o filho ter uma vida plena, ser um médico, ser um advogado, ser um cientista político, casar, ter filhos, amar, amar e amar. Por isso o relógio foi feito com o tempo ao contrário.

Orfeu acordou como qualquer outro dia qualquer. Arrumou seu cabelo no espelho do banheiro todo em branco. Olhava para si e mesmo e agradecia por saber que passaria o dia com a menina que se apaixonou. Talvez ele nunca pudesse ter ela para si, mas um dia já era tudo que ele pedia naquele momento de mudanças. Ele tinha acabado de passar no vestibular e tudo parecia novo como se tudo azul tivesse virado branco. Ele tinha planejado o dia com semanas de antecedência e tudo parecia certo. Sim, todos nós podemos ser adolescentes e bobos, é algo que combina.

Ela chegou, mas já dizendo que queria sair com o namorado e só iria ver o filme por que enrolou Orfeu por semanas. Seu nome era Daisy, tinha longos cabelos loiros, olhos azuis bem claros e um corpo magro e em forma. Ela provavelmente tinha sido a garota que todo garoto do colégio gostava, a clássica rainha da formatura e tudo mais, mas havia uma dor nela que Orfeu gostava. Todos temos nossas peculiaridades.

Enquanto o filme passava, Orfeu nem olhava para a tela. O único momento que ele prestou atenção foi quando começou a tocar the who, mas o que ele realmente queria olhar era ela. Sentada num sofá marrom perto de um quadro de rosas, era tudo que ele tinha imaginado na vida. Orfeu era um romântico, raça prestes a ser assassinadas aos poucos no mundo. Ele não podia falar que gostava dela, ele sabia que seu melhor amigo ainda gostava dela e que os dois iam ficar juntos e se casar e blá blá blá. O problema é que Orfeu tentava ser bom demais, ele queria ser melhor que o mundo em que vivia. Tudo que ele queria era vê-la feliz e poucos reconhecem como o auto-sacrificio é maior forma de amor. O melhor amigo tinha planejado conquistar ela de volta do namorado, e ia passar por cima de Orfeu sem pensar duas vezes ignorando uma amizade de oito anos sem nem ao menos pensar. Infelizmente, as pessoas são assim, elas não ligam para a felicidade de outras pessoas. Orfeu era diferente por isso, ele sofria pelos outro mais do que por si mesmo.

O filme acabou, Daisy iria num churrasco com o atual namorado. O elevador nunca foi tão rápido, aquele lugar metálico cercado de botões que acendiam parecia ser movido a foguete. Todo minuto contava, ele não conseguia parar de pensar nos lábios dela. Ele não conseguia parar de pensar nela, em todos os ângulos, em todas as formas.

Orfeu e Daisy ficaram embaixo do bloco, vendo o vento soprar por entre as árvores. Cachorros passavam brincando um com o outro, um labrador e um beagle. O porteiro sorria com um olhar que dizia algo como “você consegue garoto” até os vizinhos pareciam mais sorridentes. As pilastras gritavam “beije-a e a encoste-a em mim”, tudo queria que ele fizesse algo. Ele se sentia na melhor prisão do mundo. Estava prestes a chover.

Daisy olhou e perguntou:

- Você gosta de mim?- ela disse sorrindo.

- Eu gosto de você mais que tudo. Neruda diz que você ama sem porque, nem onde, nem quando e eu nunca tinha entendido disso. Você me fez entender.

Orfeu a beijou. E eles tiveram o que foi a melhor tarde da vida de ambos. Orfeu ficou feliz de ter ignorado sua consciência uma vez na vida. Eles passaram minutos, horas, dias, meses, anos, uma vida inteira. Ele foi feliz, ele acordava sorrindo todo dia e tudo parecia como deveria ser.

Um dia na idade de vinte seis e vinte cinco, Daisy e Orfeu respectivamente estavam na cama. Ele havia passado à noite olhando em volta dos olhos dela. Ele adorava quando não conseguia dormir e podia passar uma noite olhando aquele rosto. Ele não ligava mais para tudo aquilo que diziam sobre conseguir o que se quer é uma tragédia. Aquilo não era uma tragédia.

O relógio foi quebrado e substituído por um digital, nesse mesmo dia eu acordei. Eu não havia dito que a amava como Neruda dizia. Eu não tinha sido feliz. Minha vida era o mesmo tom cinza de sempre quando você se acostuma a passar os dias tentando enganar o tempo e a mente. Eu não passava a noite acordado olhando para ela, e sim à noite tendo esses sonhos. Esse sonho foi uma volta ao passado e me mostrar tudo que poderia ter sido. Não quero dizer coisas idiotas como carpe diem e todo esse bullshit que todos tentam tacar pela goela. Ela namorou o meu melhor amigo que não ligou para mim, não existem finais felizes na vida real. A verdadeira lição é seja o melhor que você seja, se auto-sacrifique pelo amor, mas nunca deixei de lutar. Não perca aquele negócio que faz de nós minimamente humanos. Não perca aquilo que diz que você pode e vai conseguir o quer. Uma vez que você perdeu isso, tudo já era. O sonho me fez acordar pela primeira vez em três anos.

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